Memórias e Raízes

segunda-feira, dezembro 30, 2019

MOXICO V - MOXICO-UM MEMORIAL EM GRANITO FEITO

Construímos um memorial em homenagem aos nossos três companheiros falecidos por acidente. O memorial foi construído dentro do quartel do Lucusse e a mando do capitão Azuil de Carvalho, comandante da Companhia de Caçadores 1719, que encarregou o furriel Boticas dessa nobre missão. Nos catorze anos de guerra em Angola entre as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação, os acidentes foram incontáveis e aconteceram de maneiras diversas: armas que dispararam porque as patilhas de segurança não se encontravam em posição de segurança e os gatilhos foram acionados inadvertidamente, granadas montadas como armadilha e acionadas por tração por uma falha na coordenação do movimento das forças no terreno; ou ainda, os acidentes auto provocados por falha nos travões das viaturas. Estes acidentes ocorreram nas companhias do Batalhão de Caçadores 1920 durante os dois anos de permanência no Leste de Angola em comissão de serviço entre 1967 e 1969. Somente o acidente auto não causou vítimas devido à destreza dos militares, que de um salto lançaram-se da camioneta civil que os transportava para a picada, momentos antes desta se despenhar. Outro acidente aconteceu com a pistola metralhadora de fabrico português a famigerada FBP (Fábrica Braço de Prata). Felizmente a rajada não encontrou alvos humanos e o alívio calou bem fundo quem estava presente. Não se compreendia como esta afamada arma identificada como falsa e perigosa continuava no ativo a assustar os incautos que a manuseavam. Em resultado destes acidentes faleceram na Companhia de Caçadores 1719 três militares, o que corresponde a 50% das baixas totais da Companhia, que foram em número de seis. Coincide esta percentagem, (50%), às baixas sofridas pelas Forças Armadas Portuguesas nos catorze anos de guerra em Angola, Moçambique e Guiné Bissau, ou seja, 8831 óbitos entre os quais 4280 por acidente.


Nas memórias que guardamos do Moxico temos em alta consideração os simpáticos povos da região, Bundas, Luchazes, Quiocos, Luenas, a apreensão de alguns termos dos seus dialetos, mas quase nada dos seus usos e costumes ou o significado das suas danças e festas. Não é fácil o entendimento dos vários dialetos existentes em África. Fica no entanto aqui este apontamento.
Recordamos aqueles companheiros que não nos acompanharam no regresso a casa, e que hoje são o alvo das nossas homenagens. Homenagens sentidas em cerimónias celebradas no quartel de Abrantes onde o Batalhão de Caçadores 1920 foi formado, cerimónias cujo ponto alto, o toque de silêncio, nos cala até às lágrimas. Outro ponto que nos sensibiliza profundamente são as homilias na celebração da santa missa, quando o sacerdote celebrante divulga uma lista de ex-companheiros falecidos após desmobilização. Segue-se o almoço-convívio, cuja amizade, construída na ação e no convívio do dia a dia, quando se inventava mil maneiras de passar o tempo, é patenteada, permanece viva, já há muito consolidada no nosso memorial erigido graniticamente dentro de cada um de nós.

Rememoramos alguns momentos de descontração e de diversão que nos provocam ainda um certo sorriso, momentos vividos na segurança dos quartéis, ou os de contração, de atenção e de expetativa, em picadas poeirentas prontos para reagir a qualquer ação inimiga. Não esquecemos os companheiros que, em gestos de simpatia nos emprestavam a sua amizade, tornando o dia a dia mais fácil de ser vivido. Recordo o "meias rodas" de perna curta, o amigo Curião, que se esfalfava para seguir o ritmo da passada dos "gâmbias" pernaltas, o amigo Eusébio, o amigo Maria ou o amigo Mata, que atenciosamente moderavam o passo  para que o amigo Curião, eu, o amigo Lopes, o amigo Américo Oliveira, ou o amigo Saraiva, os pudessem acompanhar. Recordo o amigo Curião responsável pela cantina a vender cerveja quente por limitações do motor elétrico; recordo a história do cabo crípto ao querer teimosamente manter a luz acesa durante o ataque ao quartel do Lucusse em Março de 1968 porque sentia-se na obrigação de decifrar uma mensagem recebida momentos antes do ataque, tendo por isso levado com um travesseiro.
Quanto piso irregular percorremos de saco às costas, cheio de rações de combate e um saco cama camuflado para pernoitarmos ao relento, mal protegidos das picadas das melgas, do frio de rachar e da chuva torrencial, e o peso das cartucheiras sobre as ancas mais a espingarda automática G-3 com a patilha de segurança em posição de segurança, o minúsculo cantil, sempre minúsculo para as necessidades impostas pela sede, eram pesos acrescidos, importantes e obrigatórios. Recordo o amigo Fonseca cujo o medo lhe provocava sono nos serviços de vigilância; o amigo Joaquim Joaquim, era Joaquim duas vezes, no nome próprio e no sobrenome; o amigo Marques; o amigo Cesário, o trinca gafanhotos, e tantos outros, todos eles "Excelentes e Valorosos" (lema do Batalhão de Caçadores 1920) e "Sempre Prontos" (lema da Companhia de Caçadores 1719); o alferes Castro, descontraído e bem disposto que degustava várias Cucas de rajada, enquanto puxava um fado e dizia umas graças bastante inteligentes; o amigo Rogério Magro, natural do Porto, praticante de Ténis de Mesa no Futebol Clube do Porto, que não deixava os seus créditos em mãos alheias e era invencível nos confrontos com adversários que queriam testar o seu valor. (Havia uma mesa numa sala vazia no quartel de Gago Coutinho e raquetes, bolas e rede, mas esses materiais eram de fraca qualidade, o que dificultava/desmotivava os mais evoluídos tecnicamente, que era o caso do furriel Rogério Magro, mesatenista formado na escola do Futebol Clube do Porto); o alferes Santos, atlético e simpático, mostrava a sua destreza elevando-se no ar batendo os calcanhares, (que pena não ter ainda comparecido em nenhum convívio); o alferes Ribeiro, sorridente, à espera que tudo terminasse para regressar a casa, (também não compareceu em nenhum convívio); o alferes Lima Ferreira que queria ser herói e oferecia o grupo de combate para operações sofrendo a contestação de todo o grupo e com isso a quebra de autoridade, «se quisesse ser herói, que fosse sozinho», diziam. Tentou seguir a vida militar mas por motivos que desconhecemos não conseguiu esse intento; o furriel Carlos Barros que andava sempre mal de um dos ouvidos, foi de Benguela para a recruta em Nova Lisboa, hoje Huambo, e depois chamado para o Batalhão 1920, Companhia 1719; o furriel Azevedo do Grupo de Combate do alferes Santos, russo e encarniçado, não me lembro de o ver rir mas era um amigo simpático, faltava-lhe somente mostrar o teclado de vez em quando; o furriel Rodrigues, chefe dos mecânicos e músico formado em conservatório. Tocou violoncelo numa orquestra de Lisboa. Uma noite acordou ao som de um disparo de um dos sentinelas e saiu do quarto assustado convicto de ter visto um "turra" aos saltos dentro do quartel. Claro que o furriel Rodrigues foi o alvo das risadas durante alguns dias. Diziam que ele tinha visto um turra yé, yé a dançar o rock. Dormiu alguns dias na camarata dos sargentos até se assegurar que afinal o turra yé yé foi somente o fruto da sua imaginação prodigiosa de músico encartado. Incorporou o conjunto musical da Diamang no Dundo, enquanto lá estivemos, já no final da comissão, com rápida adaptação a um instrumento que nunca tinha tocado, a viola solo; o furriel Nelson Meira Santos, da CCS (Companhia de Comando e Serviços), da secção de Transmissões, era o artista teatral do Batalhão, auto apelidava-se de Xalabadunga porque gostava de fazer xalabadas, termos inventados ainda estudante liceal em Lisboa. Compreendi que afinal Xalabadunga podia ser o seu nome artístico e xalabadas os números burlescos que encenava. Culto, puxava pelo seu alemão liceal para se transformar num Hitler exaltado, de discurso inflamado, penteado a rigor e de expressão facial congestionada pela ira. Era o delírio na "plateia". Dizia poesia como ninguém mas era sempre a mesma, longa, propositadamente ilógica,  humorística. Era sempre exigida pela assistência, intitulava-se "O Temudo":
                                 
                                     Vi há dias o Temudo,
                                     Aquele rapaz telhudo,
                                     Que comprou um chafariz,
                                     Só para lavar o nariz, …….

Mais adiante ia dizendo:

                                     E perguntou-me de súbito
                                     Na posição de decúbito:
                                     O quadrado da raiz
                                     Que atravessa, ao que se diz,
                                     A tangente com a secante,
                                     De eixo piriclitante e
                                     Focos encomiásticos,
                                     Que derivam dos elásticos
                                     Tem na traça facial
                                     Da quinta diagonal
                                     Os cinco turcos dos sucos
                                     Da comporta dos Kalmucos?
                                     Como a coisa era custosa
                                     Mandei vir um gasosa……….etc...etc.
A terminar:

                                     E assim o serrazina,
                                     Com a grande comoção,
                                     Comeu metade de um cão,
                                     Comprou um pau de resina,
                                     Numa velha deu chapadas,
                                     Alistou-se nas cruzadas,
                                     E partiu para a Palestina,

                                     Escreveu-me de lá, há dias,
                                     A dizer que ainda não tinha chegado!!


Era o encantamento e o segundo delírio na assistência. Dizia-a umas vezes com a voz embargada pela comoção de reviver tempos saudosos imitando a voz de um idoso, outras vezes de forma natural de quem narra um episódio do seu passado. Repetiu-a tantas vezes que alguns dos habituais assistentes a decoraram. Claro que estes números teatrais eram regados a Cucas e a Nocais, as cervejas produzidas em Angola e sempre presentes nos quartéis nesse tempo de guerra e de amizade. A invocação da saudação a Baco. o deus do vinho, "Evoé Baco, Evoé Baco, Evoé bacantes" dirigido pelo mestre de cerimónias Xalabadunga, à moda da Roma imperial, era outro ponto alto na agenda, respondendo a assembleia em uníssono erguendo as garrafas de cerveja, "Evoé, Evoé Baco, Evoé bacantes".
Nelson, o Xalabadunga, diariamente, ao por do sol, deixava a encenação, o divertimento e os companheiros. Isolava-se em silêncio e em recolhimento íntimo. Parecia que o sol tinha um poder estranho sobre ele e a sua falta mergulhava-o numa profunda reflexão solitária, só entendível pela saudade.

O último dia de comissão representava o fim de um ciclo. Regressava-se à vida civil com a consciência do dever cumprido mas sem se vislumbrar um fim para aquele conflito que se ia eternizando nas zonas quentes do Norte e do Leste. Retomar a vida civil representava a dádiva do emprego e de uma carreira segura no Estado ou na Banca, preferencialmente. Quem se estabelecia no Ultramar Português apercebia-se que o desenvolvimento económico proporcionava o emprego fácil e as oportunidades eram oferecidas em todos os sectores da atividade económica sob os auspícios de um futuro cheio de promessas. O crescimento económico galopante fazia crescer o otimismo nas populações laboriosas crentes de que o progresso seria fatalmente o destino de Angola. Inimaginável um desaire económico que pudesse por fim a esse estado de graça. Acreditava-se que o bom senso seria privilegiado por quem, no futuro, teria a responsabilidade de governar aquele grande espaço cheio de riquezas escondidas no subsolo. Haveria concerteza nos futuros líderes a responsabilidade de tudo fazerem para uma governação na continuidade, e na unidade de um só povo.

1974, precisamente a 26 de Abril espalhou-se a notícia em Angola de que no dia anterior, dia 25 de Abril, teria havido uma revolução em Portugal. O governo do Professor Marcelo Caetano caíra ante a ameaça do Movimento dos Capitães. O futuro do Ultramar Português discutiu-se numa mesa de negociações com os Movimentos de Libertação em Alvor, no Algarve. Os portugueses que estiveram no Moxico a combater nas Forças Armadas Portuguesas tinham o conhecimento de que os Movimentos de Libertação não se entendiam entre si e se combatiam para o domínio de território e de controlo de população. As armas eram o modo de se expressarem. Como seria encarado o futuro dos "auxiliares" africanos que lutaram ao lado das forças portuguesas, alguns com 15 / 20 emboscadas contadas nos seus historiais como combatentes? Quantas emboscadas mais seriam necessárias para se alcançar um novo ciclo de paz e de fraternidade entre todos os angolanos, sem exclusões de nenhuma espécie? O pessimismo dos ex-combatentes portugueses que conheciam esta realidade vivenciada no Moxico, confirmou-se no choque moral que veio nos últimos meses de permanência da tropa portuguesa no território e agravado após à sua saída e à desmobilização de todos os militares: a guerra fratricida, o bombardeamento de cidades, a fuga das populações, a ponte aérea para Portugal, o colapso económico.    
        

2 Comentários:


  • Parabens pelas Cronicas.
    Nas suas maravilhosas narrativas (MOXICO) expressando-se numa linguagem simples e cativante em que os pequenos "nadas" do seu dia-a-dia no Leste de Angola (e nao so) emergem reais e proximos de quem le, revelando uma sensibilidade rica e com muita atencao aos pormenores. Doar o seu tempo e talento e fazer a diferenca na vida das pessoas.
    Foi uma leitura feita de um so folgo e acabei rejuvenescido e com um sentimento de esperanca.
    Fui 1 Cabo Esp. da Forca Aerea e estive destacado em G.Coutinho se a memoria nao me falha pois a idade nao perdoa, de Maio a Agosto de 1967. Na altura era o BCC 1920 CCac 1721, que la estava. "Voluntariamente" fiz parte de uma coluna que foi fazer o reabastecimento ao Muie,e no regresso fomos emboscados pelo IN que nos causou vitimas (mortos e feridos) e a perda de duas ou tres viaturas que se incendiaram.
    Na sua cronica MOXICO III faz referencia talvez a essas viaturas. Sera?
    Seria uma gentileza da sua parte se por e-mail, se tiver disponibilidade para tal trocarmos alguma informacao sobre o dito acontecimento. Resido nos USA (California) desde 1970. e-mail lemosjaime44@gmail.com
    Um abraco do tamanho do Mundo>

    Por Blogger Jaime De Lemos, Às 2:18 da manhã  

  • Obrigado pelas suas palavras de simpatia caro camarada ex-combatente . Quantas vezes me perguntava qual pudesse ser a aceitação destas crónicas vividas num cenário de guerra, vivências que a grande parte da juventude portuguesa daquele tempo viveu na defesa de um Pátria una e indivisível. Naquele tempo o sentimento patriótico estava bem vivo. Sempre tive uma curiosidade enorme em saber como aconteceu a emboscada dos unimogs queimados. Disseram-me que o segundo comandante do Batalhão 1920 viajava nessa coluna e claro nunca mais pos os pés fora do quartel desde esse dia tal o susto.Se pudesse contar essa emboscada num comentário, agradecia-lhe. Fui ao último almoço do Batalhão 1920 e só lá estava o capitão Pimenta e mais um alferes, únicos oficiais presente que nos disseram que a tríade do comando já tinha falecido. Estavam sempre presentes os três. Caro amigo o meu mail é claudiofrota45@hotmail.com mas como já experimentou um vírus receio não estar em condições de limpesa. Por isso o meu pedido de escrever comentários no blog se não se importasse. Abraço amigo com um grande agradecimento pelo contacto.

    Por Blogger Cláudio Frota, Às 10:03 da tarde  

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