Memórias e Raízes

sexta-feira, dezembro 04, 2020

NAS PLANURAS DO MOXICO III-1968-Nos cus de Judas II - MUIÉ


Nas planuras do Moxico após passar capinzais, matas, chanas (savanas), linhas de água, pontões, pontes, no mais profundo Leste de Angola, tendo por limite a linha de fronteira da República da Zâmbia, encontramos uma região conhecida pelos militares portugueses por "Os Cus de Judas", o sub-sector militar de Gago Coutinho na orgânica militar portuguesa no ano de 1968.
Na mesma região entre a Vila de Gago Coutinho a atual Lumbala N´guimbo e a Vila de Cangamba, distante dos grandes centros urbanos da província do Moxico, outrora distrito do Moxico, encontramos uma pequena aldeia africana cujo nome lembra uma designação brasileira da palavra mulher, é o Muié. A aldeia do Muié encontrou a sua época áurea nos anos que antecederam o início da guerra de guerrilha no Leste de Angola, cujas primeiras ações ocorreram no ano de 1966 por dois movimentos armados, o MPLA e a UNITA. Antes, era uma povoação que agregava uma população de cerca de mil habitantes, três ou quatro comerciantes portugueses, uma Missão religiosa evangelista e um Hospital cujas condições das suas instalações e competência dos seus profissionais: médicos, enfermeiros e auxiliares, logo se tornou numa unidade de saúde prestigiada, cujo nome passou fronteiras étnicas e penetrou no país vizinho, a República da Zâmbia. Nele eram acolhidos os povos da região: Bundas, Luchazes, Quiocos, Luenas, Lundas, e populações chegadas de regiões distantes que, percorrendo centenas de quilómetros a pé, ali chegavam em busca de cura para os males do corpo, permitindo por outro lado, lavar a alma na mensagem cristã de missionários benfeitores. Mas tudo isto se perdeu subitamente com a chegada dos guerrilheiros A guerra de libertação nacional chegara ao Leste de Angola naquele ano de 1966 e o Muié passou, de terra pródiga de cura, a um aglomerado de quimbos (cubatas) sem vida, sem população, sem alma, em profundo abandono. A população africana dispersou-se pela região levada pela guerrilha, a casa do Chefe do Posto, património do Estado Português, foi ocupada por uma guarnição da tropa portuguesa que, pelo número escasso de homens, cerca de trinta, ía sofrendo os males de um isolamento atroz. Perante o perigo que rodeava o seu habitat minúsculo e precário, os soldados íam contando o tempo de permanência desejosos de  voltarem ao conforto e à segurança do quartel/sede do Batalhão em vila Gago Coutinho, a atual Lumbala N´guimbo. A defesa daquele espaço cingia-se a duas metralhadoras, montadas, uma, na varanda  de entrada da moradia, rodeada de sacos de areia, como se vê na primeira foto, a outra, na face oposta, localizada numa janela. As patrulhas saíam do "quartel" na tentativa de recuperarem elementos da antiga população que circulava nas redondezas, o que, por vezes, acontecia com êxito. Rodeados pelo arame farpado os nossos militares eram observados à distância. As flagelações (tiros à distância) causavam intranquilidade e insegurança e o receio de um ataque de graves consequências não estava longe de qualquer conjetura. As ídas ao rio para abastecimento de água, um martírio, que a respeitável presença da metralhadora montada num tripé sobre um dos unimogs, em parte, colmatava. A ponte em madeira sobre o rio fora queimada pelos guerrilheiros, impedindo o acesso por terra à tropa portuguesa sediada na Vila de Cangamba, que dista do Muié cerca de cento e vinte quilómetros em picada de piso duro, que abreviava sobremaneira o tempo de viagem. Cangamba estava em posição de fornecer reforços ou ajuda logística com maior brevidade, caso a ponte fosse reconstruída. Sem ponte os reabastecimentos partiam de Gago Coutinho em viagens que, pela natureza acidentada do piso, demoravam dia e meio na ída e dia e meio na vinda, tempo suficiente para os guerrilheiros prepararem um ataque de surpresa às colunas de abastecimento em alguma curva do trilho que ziguezagueava na mata a contornar as árvores. A distância a percorrer prefazia mais de 110 quilómetros na ida. A meio do percurso o andamento situava-se entre os 5 e os 10 quilómetros, com as rodas das viaturas em constante choque com as raízes que se salientavam no trilho provocando saltos "acrobáticos" às viaturas, quais "cabras do mato"  nos seus saltos e volteios, esses sim acrobáticos. Os unimogs eram apelidados de "cabras do mato", uma alegoria criada pelos militares portugueses devido aos saltos provocados pelo piso acidentado das picadas. No resto do percurso caminhava-se a pé pela mata com duas secções formadas em linha a ladearem o unimog da metralhadora na tentativa de desmontar hipotéticas emboscadas e obrigar os guerrilheiros a retirarem debaixo do fogo da metralhadora e das espingardas automáticas G3. A região estava a ser controlada pela guerrilha atenta ao movimento da tropa portuguesa com especial incidência nas picadas por onde transitava a logística. O Muié era o mais distante destacamento a abastecer e a viagem a mais problemática, por isso se dizia que «militar que fosse ao Muié trazia uma história de guerra para contar».
                                                                                                                                                                  
                                                         
ÀS QUATRO DA MANHÂ VAMOS AO MUIÉ

Às quatro da manhã de uma noite gelada por rigoroso e excessivo inverno em que a temperatura mínima atingira os sete graus negativos, segundo nos informava o boletim metereológico que diariamente era posto em anúncio num placard no quartel/sede do Batalhão 1920 sediado na  Vila Gago Coutinho hoje Lumbala N´guimbo, oito condutores da Companhia de Caçadores 1719 subiram para os seus lugares nos respetivos unimogs, rodaram as chaves nas ignições e o ruído ensurdecedor de oito motores em uníssono fizeram calar o silêncio daquela noite fria. 
A noite fora mal dormida devido à expetativa gerada. Sempre que se ía ao Muié a adrenalina subia ao rubro nos militares sujeitos a tal viagem. O comando da coluna foi assumido pelo capitão Azuil de Carvalho, comandante da Companhia. Era um oficial que não enjeitava o comando nos momentos de maior responsabilidade e perigo. A viagem ao Muié era um desses momentos. O perigo de emboscada espreitava em cada curva do caminho após as primeiras horas de andamento.

Já com alguns quilómetros andados os procedimentos de segurança tomaram forma. Em certos períodos do percurso descíamos das viaturas e avançávamos em linha, a pé, dentro da mata, com duas secções de sete homens comandadas por um furriel a ladearem o unimog da metralhadora, uma à direita e outra à esquerda. No início da tarde tivemos a companhia de dois caças T-6 a hélice e um helicópetro canhão que apareceram a escoltar-nos dos céus, e, entao, perante tal segurança, subímos para os unimogs até se esgotar o tempo de autonomia das naves que regressaram a Gago Coutinho para o reabastecimento de combustivel. Nesse tempo de ausência voltámos a descer das viaturas e a "bater mata" a pé, e isso repetiu-se até ao final da tarde quando os raios de sol íam aquecer outros horizontes e deixavam-nos tolhidos na noite gelada daqueles lugares longínquos e selvagens. As ídas ao Muié requeriam um esforço suplementar e a presença da Força Aérea a esperança de que o risco de emboscada se atenuasse sobremaneira. 

A primeira parte do percurso foi realmente difícil e de andamento lento devido ao piso. Os unimogs saltavam nas raízes que atravessavam o velho trilho que ía contornando uma chana (savana) de capim fazendo aumentar substancialmente o tempo de viagem. Quase no final do dia pudemos aumentar o andamento das viaturas e recuperar algum tempo. A noite chegou, e, com ela, nuvens de mosquitos (melgas) e o frio intenso. O chão duro e acidentado da picada serviu de colchão naquela noite mal dormida e o saco cama camuflado uma ajuda preciosa, mas não evitou as picadas dos mosquitos que atacaram sem dó nem piedade o sono que precisávamos dormir. A "vacina" já nos tinha sido aplicada em várias doses sempre que estas situações se apresentavam. A "Pensão Estrela" não oferecia qualquer conforto. A inexistência de ar condicionado ou serviço de quartos uma constatação que os "hóspedes" de ocasião tinham de dispensar até se levantarem sonolentos na madrugada seguinte ainda o céu estrelava. Consta que ninguém voltava nas "férias" seguintes por falta de acomodações dignas. A indústria do.lazer não chegara, ainda, ao Leste de Angola. Talvez chegue um dia quando a guerra for contada como lição de História ou recordada por testemunhos diretos ou indiretos.

Numa das curvas daquele caminho sinuoso que corria por entre as árvores surgiu inesperadamente os esqueletos queimados de dois unimogs a gasolina. Eram grandes e poderosos à vista dos nossos, a gasóleo, mas tinham uma fragilidade qual calcanhar de Aquiles, quando atingidos nos depósitos incendiavam-se, o que motivou a sua substituição pelos movidos a gasóleo, mais pequenos e aparentemente mais frágeis. Avisaram-nos das suas presenças no trilho no dia anterior do início da viagem. Serviram na propaganda contra o regime português que teimava em manter as colónias, nessa época denominadas Províncias Ultramarinas.
Por fim o piso melhorou e perante a escolta aérea dos T-6 e do helicóptero canhão, pudemos acelarar e chegar ao Muié por volta do meio dia. A entrada no Muié foi inesquecível pela impressão causada . O silêncio fazia daquela aldeia desabitada uma povoação fantasma. As portas das casas de adobe batiam na pequena aragem que corria, algumas janelas em madeira estavam fechadas, outras, escancaradas à espera que alguém as fechasse. Ouvíamos o som suave, melodioso e doce do ramejar dos eucaliptos altaneiros à medida que avançávamos para a casa do chefe de posto que agora servia de quartel à pequena guarnição, nossos camaradas de armas. Tivemos uma surpresa à chegada, afinal a aldeia não era totalmente desprovida de população, existia um elemento que tinha ficado. Era um negro espadaúdo, muito alto e de meia idade, de nome José Caxana. Foi deixado para trás pelos guerrilheiros por ser louco. Aparecia de vez em quando com ginguba (amendoins) para vender à tropa. O Muié era nessa altura uma povoação esquecida pelo Homem mas agradável de se ver, e de uma frescura singular. Talvez fosse esse o motivo de ter sido o local escolhido para a instalação de um Hospital e de uma Missão religiosa.
 Para não se perder tempo e, após uma ligeira paragem para descarregar os abastecimentos, fomos levados até ao rio para se analizar as condições da ponte. Restava sòmente os grossos troncos espetados que saíam da água profunda à espera que alguém lá colocasse travessinas e longarinas para proporcionar, no futuro, a sua utilização. Entretanto fomos flagelados com três ou quatro tiros sem consequências. Somente uma roda de um dos unimogs passou por cima do peito de um dos soldados sem o ferir.
A azáfama para a construção da improvisada ponte logo se iniciou. Estupefacto, vi machados e serras a derrubarem eucaliptos, tábuas a saírem sabe-se lá de onde e por fim, após algumas horas de labuta árdua, alguém anunciou o fim dos trabalhos. Mais uma etapa fora vencida naquele conjunto de etapas.



"MARIAZINHA", A BALADA ETERNA DE CANGAMBA


A travessia da ponte processou-se debaixo de muitos cuidados. Foi uma prova dificil para os condutores e um risco para os ocupantes das viaturas, dado que, as tábuas das longarinas eram demasiado estreitas para oferecerem toda a segurança. Não houve flagelação como se esperava. Tudo decorreu debaixo de muita tensão até nos virmos na outra margem. Respirámos de alívio, Muié ficara para trás. A viagem ía continuar para Cangamba. A picada de chão duro proporcionou andamento rápido. Passámos por Cangombe e a meio da tarde já estávamos em Cangamba com a Cavalaria. A Cavalaria tinha fama de receber bem os seus convidados. Sabiam o gosto de uma refeição quente após dois dias a ração de combate. Na verdade convidaram-nos para um jantar quente na messe. Após o jantar que decorreu em franca camaradagem, obsequiaram-nos com um convívio inesperado. A presença de um enfermeiro africano de nome Brugel, originário de Cabo Verde, um verdadeiro "show-man", proporcionou um dos momentos mais emotivos de toda a comissão. Cantou canções em português e em dialeto. Tinha uma voz quente e bem timbrada para baladas. "Mariazinha", foi a balada que mais nos tocou. Cantou em dialeto e solicitou que o acompanhássemos em coro "MA-RI-A-ZI-NHA".
A viagem prosseguiu na manhã seguinte em direção a Cassamba. O quartel era um verdadeiro primor, a cantina fora construída com canas, um trabalho artístico bem concebido à moda artesanal. Pareciam perfeitamente à vontade na zona tal como em Cangamba. Mas a viagem tinha de prosseguir até encontrarmos a estrada Luso/Gago Coutinho, hoje Luena/Lumbala N´guimbo e seguir por ela até Gago Coutinho


A EMBOSCADA EM LUTEMBO


A estrada Luso/Vila Gago Coutinho era uma estrada construída pela Junta Autónoma de Estradas de Angola. No tempo das chuvas era conservada pela empresa construtora. De terra batida  e bastante larga mantinha-se em bom estado de conservação quase todo o ano, devido às terraplanagens e à gravilha introduzida que os cilindros enterravam dando maior consistência ao piso. Não fosse a poeira, que nos tingia a pele e o cabelo, oferecia uma viagem agradável e segura. O relevê para as bermas provocava o escorrimento fácil da água das chuvas sem provocar regos profundos que pudessem afetar o andamento das viaturas. Era a via principal que ligava a cidade do Luso, hoje Luena, capital do distrito, às várias localidades a leste, até à Vila Gago Coutinho, a 400 Kms. de distância e a 70 kms. da fronteira com a República da Zâmbia.. Poderá ser, no futuro, a via que fará escoar os produtos quando o desenvolvimento económico atingir aquela parte do território.

Entrámos nessa estrada perto da povoação do Luvuei e fizemos uma paragem breve no quartel. O Luvuei era a sede da Companhia 1721, pertencente ao Batalhão. Tinha um destacamento no Lutembo, povoação situada a cerca de 70 Kms mais à frente na mesma estrada no sentido de Gago Coutinho. A coluna aproximou-se da povoação do Lutembo com o unimog da metralhadora à frente e o apontador e municiador atentos a prescrutar a mata que ladeava a estrada à procura de qualquer movimento que pudesse por em causa a segurança da coluna quando o inesperado aconteceu. Já à vista da povoação a emboscada assassina assinou a sua sentença a dois valorosos soldados que seguiam no primeiro unimog, de pé, a abrir a coluna, o atirador e o municiador da metralhadora. Dois tiros certeiros atingiram aqueles dois companheiros que caíram na estrada sem vida  Tudo levava a crer que tinham sido atingidos por uma arma de mira telescópica dado a precisão dos tiros. A consternação estava estampada nos rostos de todos os companheiros que estavam no local e apoderava-se dos rostos daqueles que chegavam. O alferes Castro estava atónito sentado na berma da estrada. Eram as primeiras baixas da companhia provenientes de arma inimiga. Uma raiva surda apoderou-se de todos nós. Aquelas baixas exigiam uma ação de retaliação, mas os elementos da guerrilha tinham abandonado o local. As emboscadas teem esta caraterística, é o atira e foge numa guerra de desgaste, de surpresa. Impotentes víamos os nossos companheiros caídos sem podermos reagir. Íamos retaliar contra quem? Contra inocentes que habitavam os quimbos (cubatas)? Concerteza que não.
Mas a viagem tinha de prosseguir embora não estivessemos ainda refeitos da surpresa e da raiva que nos enchia os pensamentos.
Chegámos a Gago Coutinho com a mágoa de termos perdido aquela batalha. Mais uma vez a ída ao Muié tinha posto de luto a tropa portuguesa, desta vez já no posfácio da viagem.

Algum tempo depois, numa viagem de abastecimento ao Ninda, sede da Companhia 1720, com destacamentos no Chiume e em Set, a sorte acompanhou a tropa portuguesa. A veterania e a valentia dos nossos militares impôs-se na picada com a captura de um emboscado e sua arma. O comandante da coluna o meu camarada de armas Furriel Rogério Magro foi agraciado com um louvor. No Set, o nosso camarada Furriel Ernesto Mateus perseguiu um grupo de guerrilheiros com captura de armas. Transportou às costas um companheiro ferido durante horas. Infelizmente temos pouca informação acerca deste acontecimento. Foi agraciado com uma Cruz de Guerra de quarta classe. Na picada do Mossuma um grupo de militares portugueses e um grupo de flechas comandados pelo nosso camarada de armas Furriel Carlos Barros aprisionou um guerrilheiro armado, merecendo por isso um louvor do comandante do Batalhão. Mais uma vez a valentia e a veterania da tropa portuguesa e dos auxiliares africanos impôs-se na picada no "duelo" com guerrilheiros. Antes de  deixarmos "os cús de Judas" sofremos, ainda, uma emboscada à vista de Gago Coutinho, hoje Lumbala N´guimbo, com graves consequências. Dois feridos graves deixaram Angola para o Hospital Militar de Lisboa, tendo um só sobrevivido. Anos passados e já residente em Lisboa, ao descer a Av. da Liberdade cruzei-me com um rosto familiar que olhava na minha direção e se dirigia para mim. Era o soldado sobrevivente da emboscada de Gago Coutinho. Convidou-me para uma imperial num café da Avenida, disse-me que trabalhava na construção civil. há algum tempo. Estivera entre a vida e a morte no Hospital Militar de Lisboa e sobrevivera por milagre..Já em final de conversa afirmou que não hesitaria em pegar numa arma e ir combater de novo no ex-Ultramar português, caso fosse chamado pelo exrército português. Com esta afirmação, algo surpreendente, não me pareceu haver qualquer sentimento de revolta ou trauma devido ao que lhe acontecera na vida militar. Tinha sim, um sentimento de pena por todas aquelas centenas de milhar de portugueses que chegavam, fugidos de uma guerra civil gerada pelos Movimentos de Libertação após a saída do exército português dos territórios coloniais de África naquele ano de 1975. Chegavam sem perspetivas de futuro a um País em revolução.

Quando o nosso pensamento se fixa em África, O Lutembo e o Muié teem recorte nítico nesse universo de emoções. O Lutembo pelo opressivo acontecimento de perda de vidas, um luto permanente que transcende meses e anos, um toque de silêncio a unir-nos no mesmo amplexo. O Muié é o respeito. Um historial de Fé vincado por uma história humana de solidariedade, um Templo de Paz e Esperança interrompido pela guerra, instalando-se o medo, a fuga, o silêncio, permanecendo sòmente o doce ramejar dos eucaliptos que conduz à reflexão. Desejamos que o Muié volte a ser a terra de cura na ação Crística que fora antes da guerra. Volte a ter uma população presente, onde se possa encontrar os ruídos típicos das aldeias africanas, com os Kassumbis (galinhas) a depenicarem aos pés das Wanna Pwo (mulher madura) sentadas à porta da cubata, ou os Gaji n´Gaja (idosos) a fumarem o seu cachimbo africano e a cogitarem uma ída ao rio ou à caça.

Sabe-se que após a ofensiva do Leste pela tropa portuguesa a partir do ano 1971/1972 o Muié passou a Sede de Companhia apetrechada para receber refugiados pelos militares portugueses. A população regressou aos seus antigos quimbos. Não se sabe se o Hospital e a Missão foram já recuperados. Os nossos votos ficam aqui expressos se o Humanismo de Homens e Mulheres de Cura devotados à Paz Crística entender por bem.

Meses depois a Companhia 1719 foi transferida para a Lunda, concessão da Diamang. O quartel, construído pela empresa, dista dois quilómetros da "capital administrativa" cidade do Dundo, uma cidade jardim repleta de vivendas rodeadas de relva.cuidada que oferecia o aspeto semelhante a uma estância turística. Disfrutámos de uma qualidade de vida invejável com acesso à  piscina ao sábado, cinema à terça feira,  sala de jogos da Casa do Pessoal onde praticávamos ténis de mesa e xadrês, biblioteca. Quiséramos que fosse este descanso um prémio, uma compensação por tudo o que passámos nos "cús de judas", mas não foi assim.
O chamamento para mais ações a leste e a sul de Saurimo (Henrique de Carvalho) intercalavam com esses dias de lazer. Uma operação de cinco dias foi surpreender garimpeiros dentro da concessão da Diamang. Em Nova Chaves apanhámos com a primeira mina. Outros isolamentos esperavam-nos em sítios de quimbos, O Dala, a sul de Saurimo (Henrique de Carvalho) conhecido pelos seus rápidos e cascatas, tinha uma população que vivia dias tranquilos como se vê na foto.
Uma hospedaria fechada aguardava pelo fim da guerra; um sítio de lazer para os tempos de paz. Até que chegou o dia de embarcar. O paquete Vera Cruz, que levara o Batalhão 1920 para Angola dois anos antes, em 1967, esperava no cais de Luanda.
Os militares do recrutamento de Angola tinham uma oportunidade de viajar para Portugal gratuitamente. Alguns não conheciam o recanto pátrio cheio de História que se aprendia nos livros escolares. A maioria preferiu regressar de imediato às suas casas, ansiosos de paz e de futuro. 

segunda-feira, dezembro 30, 2019

MOXICO V - MOXICO-UM MEMORIAL EM GRANITO FEITO

Construímos um memorial em homenagem aos nossos três companheiros falecidos por acidente. O memorial foi construído dentro do quartel do Lucusse e a mando do capitão Azuil de Carvalho, comandante da Companhia de Caçadores 1719, que encarregou o furriel Boticas dessa nobre missão. Nos catorze anos de guerra em Angola entre as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação, os acidentes foram incontáveis e aconteceram de maneiras diversas: armas que dispararam porque as patilhas de segurança não se encontravam em posição de segurança e os gatilhos foram acionados inadvertidamente, granadas montadas como armadilha e acionadas por tração por uma falha na coordenação do movimento das forças no terreno; ou ainda, os acidentes auto provocados por falha nos travões das viaturas. Estes acidentes ocorreram nas companhias do Batalhão de Caçadores 1920 durante os dois anos de permanência no Leste de Angola em comissão de serviço entre 1967 e 1969. Somente o acidente auto não causou vítimas devido à destreza dos militares, que de um salto lançaram-se da camioneta civil que os transportava para a picada, momentos antes desta se despenhar. Outro acidente aconteceu com a pistola metralhadora de fabrico português a famigerada FBP (Fábrica Braço de Prata). Felizmente a rajada não encontrou alvos humanos e o alívio calou bem fundo quem estava presente. Não se compreendia como esta afamada arma identificada como falsa e perigosa continuava no ativo a assustar os incautos que a manuseavam. Em resultado destes acidentes faleceram na Companhia de Caçadores 1719 três militares, o que corresponde a 50% das baixas totais da Companhia, que foram em número de seis. Coincide esta percentagem, (50%), às baixas sofridas pelas Forças Armadas Portuguesas nos catorze anos de guerra em Angola, Moçambique e Guiné Bissau, ou seja, 8831 óbitos entre os quais 4280 por acidente.


Nas memórias que guardamos do Moxico temos em alta consideração os simpáticos povos da região, Bundas, Luchazes, Quiocos, Luenas, a apreensão de alguns termos dos seus dialetos, mas quase nada dos seus usos e costumes ou o significado das suas danças e festas. Não é fácil o entendimento dos vários dialetos existentes em África. Fica no entanto aqui este apontamento.
Recordamos aqueles companheiros que não nos acompanharam no regresso a casa, e que hoje são o alvo das nossas homenagens. Homenagens sentidas em cerimónias celebradas no quartel de Abrantes onde o Batalhão de Caçadores 1920 foi formado, cerimónias cujo ponto alto, o toque de silêncio, nos cala até às lágrimas. Outro ponto que nos sensibiliza profundamente são as homilias na celebração da santa missa, quando o sacerdote celebrante divulga uma lista de ex-companheiros falecidos após desmobilização. Segue-se o almoço-convívio, cuja amizade, construída na ação e no convívio do dia a dia, quando se inventava mil maneiras de passar o tempo, é patenteada, permanece viva, já há muito consolidada no nosso memorial erigido graniticamente dentro de cada um de nós.

Rememoramos alguns momentos de descontração e de diversão que nos provocam ainda um certo sorriso, momentos vividos na segurança dos quartéis, ou os de contração, de atenção e de expetativa, em picadas poeirentas prontos para reagir a qualquer ação inimiga. Não esquecemos os companheiros que, em gestos de simpatia nos emprestavam a sua amizade, tornando o dia a dia mais fácil de ser vivido. Recordo o "meias rodas" de perna curta, o amigo Curião, que se esfalfava para seguir o ritmo da passada dos "gâmbias" pernaltas, o amigo Eusébio, o amigo Maria ou o amigo Mata, que atenciosamente moderavam o passo  para que o amigo Curião, eu, o amigo Lopes, o amigo Américo Oliveira, ou o amigo Saraiva, os pudessem acompanhar. Recordo o amigo Curião responsável pela cantina a vender cerveja quente por limitações do motor elétrico; recordo a história do cabo crípto ao querer teimosamente manter a luz acesa durante o ataque ao quartel do Lucusse em Março de 1968 porque sentia-se na obrigação de decifrar uma mensagem recebida momentos antes do ataque, tendo por isso levado com um travesseiro.
Quanto piso irregular percorremos de saco às costas, cheio de rações de combate e um saco cama camuflado para pernoitarmos ao relento, mal protegidos das picadas das melgas, do frio de rachar e da chuva torrencial, e o peso das cartucheiras sobre as ancas mais a espingarda automática G-3 com a patilha de segurança em posição de segurança, o minúsculo cantil, sempre minúsculo para as necessidades impostas pela sede, eram pesos acrescidos, importantes e obrigatórios. Recordo o amigo Fonseca cujo o medo lhe provocava sono nos serviços de vigilância; o amigo Joaquim Joaquim, era Joaquim duas vezes, no nome próprio e no sobrenome; o amigo Marques; o amigo Cesário, o trinca gafanhotos, e tantos outros, todos eles "Excelentes e Valorosos" (lema do Batalhão de Caçadores 1920) e "Sempre Prontos" (lema da Companhia de Caçadores 1719); o alferes Castro, descontraído e bem disposto que degustava várias Cucas de rajada, enquanto puxava um fado e dizia umas graças bastante inteligentes; o amigo Rogério Magro, natural do Porto, praticante de Ténis de Mesa no Futebol Clube do Porto, que não deixava os seus créditos em mãos alheias e era invencível nos confrontos com adversários que queriam testar o seu valor. (Havia uma mesa numa sala vazia no quartel de Gago Coutinho e raquetes, bolas e rede, mas esses materiais eram de fraca qualidade, o que dificultava/desmotivava os mais evoluídos tecnicamente, que era o caso do furriel Rogério Magro, mesatenista formado na escola do Futebol Clube do Porto); o alferes Santos, atlético e simpático, mostrava a sua destreza elevando-se no ar batendo os calcanhares, (que pena não ter ainda comparecido em nenhum convívio); o alferes Ribeiro, sorridente, à espera que tudo terminasse para regressar a casa, (também não compareceu em nenhum convívio); o alferes Lima Ferreira que queria ser herói e oferecia o grupo de combate para operações sofrendo a contestação de todo o grupo e com isso a quebra de autoridade, «se quisesse ser herói, que fosse sozinho», diziam. Tentou seguir a vida militar mas por motivos que desconhecemos não conseguiu esse intento; o furriel Carlos Barros que andava sempre mal de um dos ouvidos, foi de Benguela para a recruta em Nova Lisboa, hoje Huambo, e depois chamado para o Batalhão 1920, Companhia 1719; o furriel Azevedo do Grupo de Combate do alferes Santos, russo e encarniçado, não me lembro de o ver rir mas era um amigo simpático, faltava-lhe somente mostrar o teclado de vez em quando; o furriel Rodrigues, chefe dos mecânicos e músico formado em conservatório. Tocou violoncelo numa orquestra de Lisboa. Uma noite acordou ao som de um disparo de um dos sentinelas e saiu do quarto assustado convicto de ter visto um "turra" aos saltos dentro do quartel. Claro que o furriel Rodrigues foi o alvo das risadas durante alguns dias. Diziam que ele tinha visto um turra yé, yé a dançar o rock. Dormiu alguns dias na camarata dos sargentos até se assegurar que afinal o turra yé yé foi somente o fruto da sua imaginação prodigiosa de músico encartado. Incorporou o conjunto musical da Diamang no Dundo, enquanto lá estivemos, já no final da comissão, com rápida adaptação a um instrumento que nunca tinha tocado, a viola solo; o furriel Nelson Meira Santos, da CCS (Companhia de Comando e Serviços), da secção de Transmissões, era o artista teatral do Batalhão, auto apelidava-se de Xalabadunga porque gostava de fazer xalabadas, termos inventados ainda estudante liceal em Lisboa. Compreendi que afinal Xalabadunga podia ser o seu nome artístico e xalabadas os números burlescos que encenava. Culto, puxava pelo seu alemão liceal para se transformar num Hitler exaltado, de discurso inflamado, penteado a rigor e de expressão facial congestionada pela ira. Era o delírio na "plateia". Dizia poesia como ninguém mas era sempre a mesma, longa, propositadamente ilógica,  humorística. Era sempre exigida pela assistência, intitulava-se "O Temudo":
                                 
                                     Vi há dias o Temudo,
                                     Aquele rapaz telhudo,
                                     Que comprou um chafariz,
                                     Só para lavar o nariz, …….

Mais adiante ia dizendo:

                                     E perguntou-me de súbito
                                     Na posição de decúbito:
                                     O quadrado da raiz
                                     Que atravessa, ao que se diz,
                                     A tangente com a secante,
                                     De eixo piriclitante e
                                     Focos encomiásticos,
                                     Que derivam dos elásticos
                                     Tem na traça facial
                                     Da quinta diagonal
                                     Os cinco turcos dos sucos
                                     Da comporta dos Kalmucos?
                                     Como a coisa era custosa
                                     Mandei vir um gasosa……….etc...etc.
A terminar:

                                     E assim o serrazina,
                                     Com a grande comoção,
                                     Comeu metade de um cão,
                                     Comprou um pau de resina,
                                     Numa velha deu chapadas,
                                     Alistou-se nas cruzadas,
                                     E partiu para a Palestina,

                                     Escreveu-me de lá, há dias,
                                     A dizer que ainda não tinha chegado!!


Era o encantamento e o segundo delírio na assistência. Dizia-a umas vezes com a voz embargada pela comoção de reviver tempos saudosos imitando a voz de um idoso, outras vezes de forma natural de quem narra um episódio do seu passado. Repetiu-a tantas vezes que alguns dos habituais assistentes a decoraram. Claro que estes números teatrais eram regados a Cucas e a Nocais, as cervejas produzidas em Angola e sempre presentes nos quartéis nesse tempo de guerra e de amizade. A invocação da saudação a Baco. o deus do vinho, "Evoé Baco, Evoé Baco, Evoé bacantes" dirigido pelo mestre de cerimónias Xalabadunga, à moda da Roma imperial, era outro ponto alto na agenda, respondendo a assembleia em uníssono erguendo as garrafas de cerveja, "Evoé, Evoé Baco, Evoé bacantes".
Nelson, o Xalabadunga, diariamente, ao por do sol, deixava a encenação, o divertimento e os companheiros. Isolava-se em silêncio e em recolhimento íntimo. Parecia que o sol tinha um poder estranho sobre ele e a sua falta mergulhava-o numa profunda reflexão solitária, só entendível pela saudade.

O último dia de comissão representava o fim de um ciclo. Regressava-se à vida civil com a consciência do dever cumprido mas sem se vislumbrar um fim para aquele conflito que se ia eternizando nas zonas quentes do Norte e do Leste. Retomar a vida civil representava a dádiva do emprego e de uma carreira segura no Estado ou na Banca, preferencialmente. Quem se estabelecia no Ultramar Português apercebia-se que o desenvolvimento económico proporcionava o emprego fácil e as oportunidades eram oferecidas em todos os sectores da atividade económica sob os auspícios de um futuro cheio de promessas. O crescimento económico galopante fazia crescer o otimismo nas populações laboriosas crentes de que o progresso seria fatalmente o destino de Angola. Inimaginável um desaire económico que pudesse por fim a esse estado de graça. Acreditava-se que o bom senso seria privilegiado por quem, no futuro, teria a responsabilidade de governar aquele grande espaço cheio de riquezas escondidas no subsolo. Haveria concerteza nos futuros líderes a responsabilidade de tudo fazerem para uma governação na continuidade, e na unidade de um só povo.

1974, precisamente a 26 de Abril espalhou-se a notícia em Angola de que no dia anterior, dia 25 de Abril, teria havido uma revolução em Portugal. O governo do Professor Marcelo Caetano caíra ante a ameaça do Movimento dos Capitães. O futuro do Ultramar Português discutiu-se numa mesa de negociações com os Movimentos de Libertação em Alvor, no Algarve. Os portugueses que estiveram no Moxico a combater nas Forças Armadas Portuguesas tinham o conhecimento de que os Movimentos de Libertação não se entendiam entre si e se combatiam para o domínio de território e de controlo de população. As armas eram o modo de se expressarem. Como seria encarado o futuro dos "auxiliares" africanos que lutaram ao lado das forças portuguesas, alguns com 15 / 20 emboscadas contadas nos seus historiais como combatentes? Quantas emboscadas mais seriam necessárias para se alcançar um novo ciclo de paz e de fraternidade entre todos os angolanos, sem exclusões de nenhuma espécie? O pessimismo dos ex-combatentes portugueses que conheciam esta realidade vivenciada no Moxico, confirmou-se no choque moral que veio nos últimos meses de permanência da tropa portuguesa no território e agravado após à sua saída e à desmobilização de todos os militares: a guerra fratricida, o bombardeamento de cidades, a fuga das populações, a ponte aérea para Portugal, o colapso económico.    
        

sexta-feira, dezembro 28, 2018

NAS PLANURAS DO MOXICO IV - MOIO, MOIO MOXICO, MOIO

A palavra Moxico deriva do nome do soba Quioco Mwa Muxiku. O povo era Tchokwe ou Cohwe que os portugueses puseram Quioco. A ocupação do Moxico pelos portugueses iniciou-se a 3 de Março de 1895 pelo Tenente-Coronel Trigo Teixeira, que partiu de Luanda no intuito de ocupar os territórios entre o Alto Kwanza e o Zambeze, que  passaram a ser designados por Moxico. Trigo de Morais estabeleceu uma colónia penal militar agrícola nas terras do soba Mwa Muxicu, fazendo construir a fortaleza Ferreira de Almeida, extinta em 1901. Em 15 de Setembro de 1917 separou-se do distrito de Benguela. 
O fundador da cidade do Luso (Moxico Novo) foi D. António de Almeida. Em 1922 Moxico Novo passa a designar-se Vila Luso e em Maio de 1956 passou a cidade. Em 1950 inicia-se a construção do aeroporto e o edifício dos Correios e também o Hotel Luso, sede do Banco de Angola, e o Cine-Teatro Luena que começou a funcionar em 1956.
A cidade do Luso nasceu 10 anos depois de terminada a Conferência de Berlim (1884/1885). Foi nessa conferência que se desenhou o mapa de África como é agora. Foi aí que nasceu o território de Angola. Na Conferência de Berlim ficou estipulado a obrigatoriedade da ocupação efetiva dos territórios de África pelas potências coloniais europeias e a aculturação dos povos. Existiam somente duas cidades onde é hoje a República de Angola: Benguela, fundada em 1617 pelo português Cerveira Pereira, que teria somente cerca de 200 habitantes, capital do Reino de Benguela que abrangia os territórios entre o Quanza e o Cabo Negro, (perto da atual cidade de Tombwa, a antiga Porto Alexandre, onde o navegador português Diogo Cão numa viagem pela costa africana colocou um padrão); e Luanda, fundada em 1575 por Paulo Dias de Novais com cerca de dois mil habitantes, capital do Reino do N´Gola, que ia desde o Ambriz até ao Quanza. No vasto interior, povoados fundados por antigos funantes (comerciantes ambulantes) iam-se mantendo ou valorizando dependentes da satisfação dos sobas, ou suprimidos, pela sublevação dos povos. Os grupos de colonos chegados aos planaltos do interior Sul e Centro ficavam à sua sorte. Famílias empobrecidas optam viver como africanos (cafrealismo) vencidos pelas dificuldades e "esquecidos" pelas autoridades portuguesas. Os bóeres chegaram à Humpata, no sul do território, vindos da Damarlândia, África do Sul inglesa, após uma travessia do deserto à moda bíblica, onde sucumbiram pela sêde famílias inteiras. Chegados ao rio Cunene em 1880, (fronteira natural com o Sudoeste Africano) e após conversações com as autoridades portuguesas na então Vila de Moçâmedes, prosseguiram a sua marcha até à Humpata, no planalto da Huíla, região de muitas águas e terrenos férteis onde se instalaram. Constituíram a Colónia agrícola de S. Januário, onde só existiam dois portugueses estabelecidos. Adquiriram a nacionalidade portuguesa,  mas em 1925 realizaram novo trek de regresso à Damarlândia.
Ficaram muito poucas famílias, ou porque não quiseram abandonar as suas farmes, ou porque se sentiam portuguesas, ou porque, as forças, devido à idade, já não permitirem grandes esforços. Contavam as suas vidas de aventura como voluntários na guerra com os povos da temivel Liga Ovampo do território Ovampo, antes e durante a 1ª Grande Guerra Mundial na Europa (1914-1918). A Liga Ovampo era uma liga de povos guerreiros,  onde se contavam os aguerridos Cuamatos e os Cuanhamas, entre outros, chefiados pelo soba Mandume e seus lengas (generais), Liga armada e municiada pelos alemães do Sudoeste Africano. Os boéres eram excelentes cavaleiros e exímios atiradores. Moçâmedes já era uma ridente cidade desde 1907, a terceira,  fundada por portugueses ex-residentes em Pernambuco, Brasil, fugidos e perseguidos durante revolução praieira, já o Brasil era um Império, independente de Portugal desde 1822. Chegaram ao porto de Moçâmedes em 1849 e constituíram uma colónia agrícola. Encontraram uma feitoria fundada por olhanenses chegados em 1844, a única que se mantinha ativa graças à produção do pescado e à indústria do peixe seco que era exportado para Luanda nos navios correio do Estado e vendido no almoxarifado. Estes novos colonos, 188 no seu todo, chegaram no dia 4 de Agosto de 1849 na barca "Tentativa Feliz". Fundaram a povoação de Moçâmedes e deram finalmente o impulso económico que a região precisava. Dedicaram-se, juntamente com os olhanenses, à produção do pescado e à indústria do peixe seco, tornaram-se produtores de algodão na época da guerra civil americana, com bom rendimento do capital investido devido ao aumento do preço nos mercados. Dedicaram-se à produção da cana do açúcar com três engenhos comprados no Brasil subsidiados pelo Estado Português, engenhos a serem entregues a sociedades que se viessem a constituir ou a indivíduos empreendedores que logo se comprometeram a reembolsar o Estado com o rendimento de várias safras. Chegaram cheios de fé num futuro promissor. Outros 120 chegaram em 26 de Novembro de 1850, também de Pernambuco com o mesmo objetivo: o povoamento e o desenvolvimento da agricultura em Moçâmedes. Em 1859, ou seja 10 anos após a chegada da primeira colónia Moçâmedes tornou-se vila. A corrente migratória proveniente de Olhão a partir de 1860 fez aumentar o consumo do produto agrícola, salvando a agricultura do marasmo a que estava devotada. Historiadores afirmam que os olhanenses vieram salvar a agricultura que se fazia nas margens dos rios Bero, Giraúl e Coroca pelo consumo de frescos.
Foram eles que levaram as primeiras artes de pesca para as praias a sul de Benguela, fundaram pescarias e povoações em praias isoladas e desertas e organizaram o comércio de cabotagem. Entretanto a escravatura fora abolida em 1869 nos territórios administrados por Portugal. Passara o período mais tenebroso que África conhecera. As fazendas brasileiras foram o destino deste tráfego ignóbil que finalmente as potências coloniais europeias punham termo. Duzentos anos tinham-se passado desde que o padre jesuíta António Vieira se insurgira no Brasil contra a escravatura dos índios. O rei português D. João IV expediu uma provisão real com data de 9 de Abril de 1655, em que ordenava que os índios ficassem apenas sob a jurisdição e proteção das missões da Companhia de Jesus. Era o sonho da Companhia reunir os catecúmenos, civilizá-los, conservá-los sob sua tutela, contrariando a pretensão dos fazendeiros que os queriam para si. Um dos resultados desta postura política foi o aumento do número de escravos encaminhados de África, (cerca de dois milhões) para as fazendas no Brasil.
  
Em Angola, o esforço de Portugal para povoar o interior do território ia prosseguindo com o sacrifício das finanças públicas. Fazer de Angola um segundo Brasil era o propósito histórico a atingir após a independência daquela antiga colónia portuguesa (Brasil). 222 madeirenses chegavam no navio "Índia" ao porto de Moçâmedes em 1884, subiram ao planalto da Huíla em carros bóeres para se fixarem no vale do Lubango e dedicarem-se à agricultura. Fundaram um povoado naquelas terras planálticas que prosperou rapidamente para se tornar cidade em 1923 com o nome cidade de Sá da Bandeira, hoje cidade do Lubango. No dia da sua ascensão a cidade, o comboio do Caminho de Ferro de Moçâmedes subia a Serra da Chela e freava pela primeira vez na nova estação daquela recém eleita cidade, tornando-a terminal de linha. Cerca de 40 anos mais tarde chegava a Cassinga, nas "Terras do Fim do Mundo", no sudeste angolano. para carregar o ferro extraído das minas e transportá-lo ao porto mineraleiro situado em Moçâmedes, onde, através de um sistema de tapetes rolantes era despejado nos porões de grandes petroleiros com destino ao Japão e outras potências industriais.

No planalto central, no Huambo, as distâncias obrigavam a um esforço de longas caminhadas. Como no sul, adotaram o carro bóer, como se vê na foto acima, puxado por juntas de bois, para o transporte de pessoas e de mercadorias.
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O Caminho de Ferro de Benguela veio enriquecer o estado de escassez dos transportes. O planalto central sentiu os seus efeitos. A linha férrea foi-se alongando até chegar à fronteira do Congo Belga, hoje Congo Kinshaza numa extensão de 1.349 Kms, terminando a sua viagem em Teixeira de Sousa, a atual Luau. Nesta vila, a partir de 1938 internacionalizou-se com a ligação ao Katanga no Congo Belga, hoje República do Congo Kinshaza, e Rodésia do Sul, na época colónia inglesa, a atual República da Zâmbia.
Instalaram-se novos povoadores portugueses ao longo da linha. O interior central conheceu então um rápido crescimento agrícola, comercial e industrial. Foi fundada a cidade de Nova Lisboa em 21.9.1912 pelo Governador Geral Norton de Matos (1912-1914). Teve esta designação (cidade de Nova Lisboa) de 1928 a 1975. Em apenas cinco dezenas de anos tornou-se na segunda maior cidade de Angola e grande centro agrícola, industrial, comercial e cultural  Em 4.9.1940 passou a sede de diocese. As oficinas gerais do Caminho de Ferro de Benguela situavam-se nesta nova cidade com várias centenas de trabalhadores instalados e suas famílias. O mundo do desenvolvimento parecia apontar para Leste em direção ao Moxico e nordeste em direção à Lunda. Mas a lenta expansão demográfica e a larga extensão de território foram condicionantes que fizeram esperar por políticas mais decididas na criação de infraestruturas. Em 1974 aconteceu algo importante no Moxico no que se concerne às acessibilidades, concluiu-se a asfaltagem da estrada Luso / Vila Gago Coutinho, hoje cidade de Luena / Lumbala N´Guimbo com extensão a Ninda numa distância de 480 quilómetros. Outra estrada foi asfaltada para Sul a partir do Cuito, a antiga Silva Porto no planalto central, sensivelmente com a mesma dimensão. Lumbala N´Guimbo, a antiga Vila de Gago Coutinho deveu este nome ao homem que liderou a missão que, entre 1912 e 1915 delimitou a fronteira sudeste. O sub-sector de Gago Coutinho era um quase deserto em termos de atividades económicas promotoras de desenvolvimento. Deserto à espera das energias do colonizador apto, empreendedor, criador e inovador.
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Em 1973 Angola possuía mais de 8.000 Kms. de estradas pavimentadas. Todas as cidades, (perfaziam mais de trinta), estavam ligadas entre si por essas estradas. Percorre-se Angola de Norte a Sul e do litorial, (cidades do Lobito ou Benguela) à fronteira Leste no Moxico em asfalto, onde noutro tempo se comia o pó levantado pelos rodados das viaturas. Mérito da JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola) pela excelência do trabalho realizado.
Um desenvolvimento galopante em todos os sectores da atividade económica foi conseguido noutras regiões do território a partir de 1961, aquando do início das hostilidades.

No seu discurso sobre Luso-Tropicalismo, o sociólogo brasileiro Gilberto Freire refere-se à «capacidade dos portugueses para confraternizar, lírica e franciscamente com africanos, ameríndeos e asiáticos para incorporar os seus valores, para amar suas mulheres, é única nos portugueses».
Freire defende que o «método mouro de conquista pacifica de povos, de raças e de culturas foi assimilado pelo homem luso e posto ao serviço da expansão cristã nos trópicos».«Uma política social de feitio tão pouco europeu que acentuou a singularidade da posição dos lusitanos entre os poderes imperiais da Europa. Amorenezou-se sob o sol dos trópicos ou sob a ação da mestiçagem».
«Estes traços de personalidade do povo português resultaram da sua origem étnica e cultura heterogénia e refletiram-se na expansão ultramarina, o mundo que o português criou, criando uma unidade de sentimento e cultura, acima de meras questões de soberania».«Há no português enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres, sem que para isso implique perda de caráter». «Foi esta faceta que lhe permitiu sempre manter a atitude de tolerância e que imprimiu à colonização portuguesa, em certas épocas, o caráter inconfudível de assimilação por adaptação». Ao contrário de outros povos europeus os portugueses não eram etnocêntricos mas sim cristocêntricos». Como resultado da miscigenação Freire defende que emergiu um novo tipo de sociedade e de civilização caraterizado pela presença e participação dos homens de cor. «A integração de agentes culturais seria o resultado natural da vocação ecuménica da presença portuguesa pelo mundo desde os tempos do Infante D. Henrique...»

Mas os ventos de mudança começaram a soprar. O tempo da 1ª. República em que o Alto Comissário português General Norton de Matos dignificou em Angola, fundando uma cidade no seu Centro (Nova Lisboa) e projetando Estados Federados com autonomia financeira nos territórios ultramarinos chegara ao fim. Este paradigma assente pela ação de Norton de Matos durante a 1ª. República foi definitivamente abandonado. O Estado Novo tomara os destinos do País com a constituição de 1933 e com novas políticas de contornos ditaduriais. Com o novo modelo instituído desaparecia a autonomia financeira de cada um dos territórios de África e os seus orçamentos teriam de ser aprovados pelo Ministério das Colónias.

Os ventos da história vindos da Europa reconheciam que os povos sujeitos ao sistema colonial tinham o direito de serem livres para escolherem eles próprios os seus destinos. Portugal permaneceu estático a essa mudança. Em 1961 a guerra para a libertação do território chegou ao Norte, e em 1966 ao Leste. O Moxico ía conhecer um dos períodos mais cinzentos da sua história. Abriu-se a frente Leste pelo exército português por um lado, e pelos movimentos independentistas por outro. A guerrilha estava no terreno para doutrinar e controlar populações, o exército português para frustrar essas intenções e trazer as populações até às cidades, vilas, postos administrativos e quartéis numa ação de reordenamento visando dificultar a ação da guerrilha. Nessas aldeias agora constituídas havia uma organização de alerta e autodefesa garantidas pelas Milícias de Regedoria lideradas normalmente pela autoridade tradicional (sobas), armados de espigardas de repetição. O êxodo da população deu-se após o início das hostilidades em 1966. O Moxico ficou despovoado.
A maior concentração de população situava-se em Gago Coutinho, hoje Lumbala N´Guimbo, com mais de cinco mil habitantes e à volta de vinte e cinco sobas. As etnias eram várias, desde os povos da região, Bundas, Luchazes, Quiocos aos Huambos mais distantes, em convivência pacífica. Existia um posto escolar, uma delegação da Junta Autónoma de Estradas, dois comerciantes com atividade limitada, duas missões religiosas, uma masculina e outra feminina, que mantinham alguns serviços de educação e aculturação. A situação económica das populações era a mais baixa que se pode imaginar. As lavadeiras contratadas pelos militares auferiam algum rendimento. As forças militarizadas autótones tinham também algum rendimento. Os comerciantes íam obtendo algum lucro com as encomendas de marisco e outros  produtos que chegavam no avião Nord Atlas da Força Aérea Portuguesa, a via transportadora do correio que chegava uma vez por semana.
A segunda maior concentração de população era no Sessa, a 90 Kms a Oeste de Gago Coutinho, com cerca de dois mil  habitantes. Havia um comerciante estabelecido ído do Muié, povoação que fora totalmente abandonada. Era transmontano. O Mussuma a sete Kms. da República da Zâmbia continha pouco mais 100 indivíduos quando noutro tempo  mantinha`seis mil habitantes. Outras pequenas concentrações existiam espalhadas pelo território mas não passavam disso mesmo, pequenas concentrações. O sub-sector militar de Gago Coutinho, nos cús de Judas, estava quase deserto.

Era dado ver-se o movimento de tropas fardadas de camuflado munidos de espingardas G3, em cidades, vilas e aldeias nas zonas de conflito armado, no Norte e no Leste daquele território catorze vezes e meia maior que Portugal Continental. Território onde viviam à volta de 600.000 portugueses, a grande maioria na escala social média baixa. A segurança dessa população, nas cidades, nas vilas e aldeias nas zonas de conflito armado dependia desses soldados que traziam da metrópole (Portugal Continental) a vontade de servir e de proteger. Nas estradas de terra batida, nas picadas e trilhos marcados pelos rodados das viaturas, os unimogues, as berliet, os camiões, rompiam a nuvem de poeira provocada pelo andamento das viaturas da frente, poeira que se elevava nos ares e invadia toda a coluna na vida diária de quem exercia a defesa da soberania.
Os gritos de entusiasmo das crianças á passagem das viaturas era esfuziante, "Moio", "Moio", "Moio", gritavam, Só uma criança pode libertar tanta energia contida, num momento. Continua audível a quem viveu esses momentos breves de euforia. "Moio", "Moio Moxico", "Moio" respondiam os militares contagiados.

Infelizmente a grande maioria dos portugueses que pisaram o solo africano em Angola, Moçambique ou na Guiné Bissau eram soldados enviados pelas forças armadas portuguesas para defenderem a soberania de Portugal dos movimentos independentistas. Em Angola foram 14 anos de guerra colonial em que os militares portugueses permaneciam dois anos em comissão de serviço. Regressavam com a visão imprecisa e limitada da grandeza do território e do seu desenvolvimento o que motivava o desinteresse para uma possível projeção de vida. Nas zonas onde a paz imperava, no sul e centro do interior e litorâneo, as cidades, vilas e aldeias cresciam e embelezavam-se, eram lugares onde existia confiança num futuro promissor. Esses soldados regressavam fascinados com a beleza de algumas paisagens idílicas nos espaços visitados, o caso do Dala com as suas cascatas, rápidos e verdura luxuriante, fascinados pela afabilidade das populações que, por temperamento já explicado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire, os militares se socializavam em conversas amenas e trocas de informação, querendo saber o significado de vocábulos do seu dialeto, ou encomendar algum artigo do artesanato quioco, um povo hábil que elabora peças em madeira para caçar ou pescar, de tamanho natural ou em miniatura, máscaras para as suas danças tradicionais e rostos talhados no pau com perfeição. Os militares lá vinham de vez em quando com novidades:
-Sabem como se diz galinha na língua deles? Cassumbi. E homem forte e alto? Samuconga. E homem alto e magro? Camiramira. E Rapariga bonita? Caféco Chamuanza. E só rapariga, Caféco. E velha? Mana Pó,(corruptela de Mwna Pwo) E velho? Caixa na caixa (corruptela de Gagi n´Gaja).E água? Meia, meia de calçar, diziam. Alguns militares foram mais longe na sua ânsia de conhecer África. África é para se disfrutar, dizia certo amigo militar..
E vai daí improvisa uma rede para capturar uma linda borboleta que esvoaçava no aquartelamento e que se aproximara do arame farpado desaparecendo na vegetação. O inaudito desta situação, já de si algo hilariante, é que correu atrás dela com a rede em riste passando ele também o arame farpado, desaparecendo no mato e das vistas dos companheiros que o esperaram com preocupação. Isto passou-se no Muié em 1968 na zona mais quente do Leste, nos Cús de Judas. Acabou por juntar inúmeras peças de arte quioca ao longo do tempo. Como as deveria condicionar para as poder embarcar? Nem ele próprio sabia responder! O certo é que as embarcou no Vera Cruz no regresso a Portugal em Julho de 1969.

Se foi a mulher que inventou a agricultura, no Moxico foi a mulher que inventou a pesca da tuqueia, um peixe mais pequeno que joaquizinhos criado nas chanas (savanas) alagadas da Cameia no Moxico no tempo da chuva. É pescado por mulheres. Quando as águas descem é vê-los a brilhar ao sol presos nos ramos das bissapas (arbustos), ou caídos no manto seco e gretado do solo, como descreve o estudioso da cultura angolana, o radialista Sebastião Coelho no seu blog. Curiosidade que só os tempos de paz poderiam oferecer e seria possível apreciar, entre muitos outros costumes a descobrir naqueles povos amigos e pacatos. Então o grito Moio, Moio Moxico, Moio, não seria somente lembrado como um grito de satisfação e de liberdade na despedida daquelas terras virgens e selvagens, mas, dupla ironia do destino, como um grito de mágoa, na saudade de muitos e muitos momentos vividos de confraternização, confraternização com um povo simpático, afável e acolhedor que se tornou amigo e que sempre será lembrado.  MOIO, MOIO MOXICO, MOIO.  

quinta-feira, dezembro 01, 2016

NAS PLANURAS DO MOXICO II -1968-NOS CUS DE JUDAS

A rotação das companhias operacionais do Batalhão de Caçadores 1920, (vidé post "Nas Planuras do Moxico"), ía fazer-se faseadamente para não desguarnecer os quartéis. A Companhia 1719 estacionada no Lucusse, a que eu pertencia, renderia a 1721, estacionada no quartel / sede do Batalhão em Vila Gago Coutinho, hoje Lumbala N' Guimbo, que dista 70 kms da República da Zâmbia. Das três companhias operacionais do Batalhão, a 1721 era a mais stressada. Esteve sujeita durante sete meses aos ataques de surpresa da guerrilha quando se deslocava no abastecimento aos quartéis sob a sua logística.
Antes de deixarmos o quartel do Lucusse houve a preocupação de se erguer um memorial aos três companheiros lamentavelmente falecidos em dois acidentes. A sorte ditou a primeira baixa da Companhia. O disparo de uma G3 atingiu mortalmente um camarada quando decorria a limpeza das armas em vésperas de sairmos para o Lumbala, no saliente do Cazombo. O segundo acidente aconteceu nos morros do Cazombo, a norte do Lumbala, cinco meses depois, com o óbito de mais dois companheiros atingidos pelo rebentamento de uma armadilha ali montada pelas forças especiais para defesa daquele local durante as horas que ali íam permanacer. Uma palavra de agradecimento e reconhecimento aos valorosos enfermeiros que, no local e com parcos meios, tudo fizeram para aliviar o sofrimento dos feridos naquela noite fatídica.
Íamos deixar o quartel do Lucusse sete meses após a nossa chegada. A povoação, de numerosos quimbos (cubatas), a população, calculada em mais de mil individuos, ocupava vasta área. Dois comerciantes portugueses permaneciam de pedra e cal. Ao recordarmos este vasto período de sete meses de intervenção da Companhia, logo nos ressalta as operações militares no Lumbala, no saliente do Cazombo, onde o grande rio Zambeze nos oferecera a visão serena do seu estuário e o uso seguro da sua praia fluvial, quando, após caminhadas de dias, cansados e sedentos, mergulhávamos nas suas águas. Caminhadas aparentemente sem rumo nos quarenta dias que permanecemos nas suas margens sem vermos viv´alma. A região é de facto verdadeiramente despovoada. Só as manadas de nunces dão vida às chanas (anharas, savanas) esquecidas pelo homem, perseguidos tenazmente por incansáveis predadores. No trilho Lucusse/Lumbala permaneciam abatizes, (árvores derrubadas sobre o trilho) do início das hostilidades (1966) com novos trilhos a cortorná-los.

O meu grupo de combate foi a primeira tropa da Companhia 1719 a seguir para Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo) sob o comando do alferes Castro, quando do início da rotação das companhias operacionais do Batalhão. Fomos render um grupo de combate da Companhia 1721 que seguiu para o Luvuei e seu destacamento no Lutembo.
Na região de Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo), conhecida pelos militares por "os cus de Judas", a preocupação era enorme. Dois movimentos digladiavam-se entre si e ambos opunham-se tenazmente à tropa portuguesa. Eram guerrilheiros que tinham sob o seu controlo populações refugiadas nas matas. Sabiamos que a Companhia 1721 que estávamos a render sofrera fogo mortífero nas emboscadas a que foram alvo. As colunas de abastecimento saíam da Sede do Batalhão fortemente armadas com o unimog da metralhadora à frente montada num tripé com avental em aço para proteger o peito do apontador e do municiador que seguiam de pé prontos a disparar ao primeiro sinal de emboscada.
As chapas laterais em aço e o capacete metálico ofereciam proteção ao resto do corpo. A coragem destes homens que seguiam à frente da coluna era digna dos maiores elogios e reconhecimento de camaradas e do comando. Encabeçavam a coluna e constituíam o primeiro alvo das ações da guerrilha. A coragem não se aprende nos manuais de instrução, está dentro de cada um, nas motivações e no domínio do medo que cada um exerce sobre si. Naquela zona, de complexas picadas, que ligavam a Sede do Batalhão aos pequenos povoados de escassos quimbos que se mantinham junto aos quartéis e casas de chefes de posto a guerra mantinha-se acesa na perseguição a grupos armados pelas tropas portuguesas e auxiliares indígenas (Flechas, TES, GES), e em sentido contrário, de emboscada às colunas de abastecimento aos quartéis, cujo alvo era a tropa portuguesa e auxiliares indígenas que viajavam nas picadas: Ninda e seus destacamentos de Chiúme e Sete; Muié, o mais distante, de trilho arguto a impedir o avanço rápido dos unimogs que saltavam nas raízes que se salientavam no trilho quais cabras do mato em suas danças acrobáticas; Mussuma, destacamento avançado a sete kms da Zâmbia de escassa população que habitava 40 / 50 quimbos (cubatas) junto ao quartel e à casa do chefe do posto, a autoridade portuguesa na região, que surpreendentemente se mantinha ao serviço, apesar do risco de vida que corria.

Welvitchia Mirabilis
Quinze/vinte dias após ter chegado a Gago Coutinho, (Lumbala N´Guimbo), surgiu Março e as férias. Escusado será dizer que aguardava ansiosamente por esse dia. Ía reencontrar a família, ver amigos, assistir às "Festas do Mar". Era as festas de verão da cidade sob a sigla dos três Ms, (Moçâmedes, Mar e Março). Moçâmedes, cidade do sul de Angola recebia visitantes de toda a parte, num movimento inusitado ao deserto e às suas atrações, como o Oásis da
"Lagoa dos Arcos" ou "Arco do Carvalhão", conhecer a célebre Welvitchia Mirabilis, a planta endémica que só é encontrada naquele deserto e na Damarlândia, no Sudoeste Africano, visitar as amplas praias arenosas onde se praticava a caça submarina, conhecer a cidade e a animação da feira, assistir ao circuito automóvel que se tornara na maior atração das festas com a presença de alguns dos grandes volantes nacionais em confronto com os volantes locais e de outras cidades daquela ex-Província portuguesa. Fui renovando energias, mas o pensamento, esse bailarino errante, por vezes, fixava-se nas recordações mais recentes: a imagem daquela picada arenosa e quase a pino, a dificuldade em ultrapassá-la, os carros atascados, o guincho da berliet a puxá-los, a chana alagada, os unimogs atolados, os ramos debaixo de rodas, a tentativa de os fazer andar mais alguns metros, etc etc.
Os amigos de infância estavam todos lá. Deixámos de saber uns dos outros após termos sido chamados para as zonas de conflito. A grande maioria estava no Norte a cumprir os dois anos de comissão. Ninguém pensava no pior apesar de alguns terem passado por situações difíceis. Estávamos obrigados a cumprir um dever e teríamos de permanecer até nos mandarem para casa.
O que sabe bem pouco dura. Em vésperas de tomar o "friendship"  de regresso a Gago Coutinho, despedi-me de alguns amigos. Encontrei o Rato (Vítor Alves) na rua, trabalhava no despachante oficial sr. Radich. Tive no entanto tempo de desabafar umas palavras sobre a felicidade. Não sabiam a sorte de poderem olhar o dia seguinte com tranquilidade e com futuro. Despedi-me carinhosamente do meu Pai que a falta de saúde o debilitara fortemente. Dei-lhe palavras de conforto e de esperança, mas intimamente sabia que era a última vez que o via com vida.
Não havia voos diretos de Moçâmedes para o Luso. O avião fez escala em Luanda voando depois para o Luso. Do Luso para Gago Coutinho tencionava viajar no avião da Força Aérea Nord Atlas (barriga de ginguba) que transportava o correio e encomendas todas as terças feiras para várias localidades. Gago Coutinho encontrava-se na rota desse voo assim como Henrique de Carvalho (Saurimo) e Cangamba.
Para minha surpresa fui informado na secretaria do comando que o quartel do Lucusse, meu quartel anterior, tinha sido atacado por um grupo numeroso de guerrilheiros. Dista do Luso (Luena), 150 kms e isso constituia motivo de preocupação na cidade. Uma coluna de abastecimento (MVL) estava prestes a sair do Luso para Gago Coutinho passando pelo Lucusse e decidi ir nessa coluna. A escolta era feita por duas secções da minha companhia que se mantiveram no Lucusse com o capitão para fazerem a entrega do quartel à companhia que nos rendera. Esta viagem fecharia a rotação das companhias operacionais do Batalhão. Apanharíamos o capitão no Lucusse que viajaria connosco e com o que restava da companhia para Gago Coutinho. No dia aprazado para o MVL (Movimento de Viaturas Ligeiras) apresentei-me ao comandante de escolta. Vinha sem arma e um soldado emprestou-me uma granada para que não ficasse sem defesa em caso de emboscada. Não vi o camionista sr Artur Alves naquela viagem. Provavelmente não teria sido escalado pelos serviços do exército. Conheci-o quando pela primeira vez viajei naquela estrada Luso / Gago Coutinho, hoje Luena / Lumbala N´Guimbo na cabine da sua camioneta. (Vidé post anterior "Nas Planuras do Moxico")
A coluna chegou ao Lucusse sem novidade. O capitão ao me ver disse-me que vinha em má altura. Parecia preocupado com os dizeres de uma mucanda (bilhete) encontrada perto do quartel. Dizia que nos aguardavam  a 30 kms do Lucusse. Pareciam bem informados da viagem que estávamos a realizar. O capitão tinha passado um mau bocado no ataque ao quartel. Teve de rastejar até à saída da camarata debaixo de fogo intenso para entrar na trincheira que circundava todo o interior do aquartelamento a partir das camaratas. O ataque fora denunciado e perdida a surpresa.  O dispositivo de defesa anulou a tentativa de entrada no quartel e foi eficaz na reação ao fogo IN (inimigo) que vinha de fora do arame farpado.
O comando da coluna passou para o capitão que ordenou o disparo do morteiro 60, ora para a direita, ora para a esquerda da estrada, de modo a provocar um efeito psicológico negativo, de receio, a quem estivesse emboscado a poucos metros da estrada. Na realidade o estoiro da granada de morteiro impressiona pela audição, parece o rasgar de um pano que se ouve a algumas centenas de metros de distância.
Já perto de Gago Coutinho os carros da frente pararam de repente fazendo parar toda a coluna  Os militares saltaram dos unimogs e os camionistas saíram apressados das cabines das camionetes para se resguardarem nas bermas da estrada. Uma bandeira desfraldada não identificada sinalizava a presença de guerrilheiros na zona. Como levava uma máquina de filmar quis filmar aquela cena empolgante. Procurei o capitão que estava deitado na berma da estrada em posição de fazer fogo. A autorização foi concedida e pude filmar as primeiras cenas de um filme que serviria mais tarde para recordar aquela fase da minha vida de militar miliciano em cenário de guerra.
Passados uma meia hora de expetativa retomámos a marcha até Gago Coutinho sem que o IN (inimigo) se tivesse manifestado.

Dias depois começou a dança dos reabastecimentos. O primeiro foi ao Mussuma, que dista setenta quilómetros de Gago Coutinho (Lumbala N´guimbo) e sete da fronteira com a República da Zâmbia. Partimos de madrugada, bem cedo, com o propósito de regressarmos no mesmo dia, evitando dar tempo ao IN de preparar qualquer ação contra a coluna. A minha secção desceu no caminho com o objetivo de detetar a presença de algum grupo armado. Contavam que a aquela tática tinha sido adotada devido ao conhecimento de pontos sensíveis onde normalmente a guerrilha atuava. Tínhamos o aviso de que os confrontos já se tinham dado noutras ocasiões e de modo inesperado, o que equivalia a dizer que puséssemos toda a atenção no silêncio para não sermos pressentidos. Estávamos por nossa conta naquelas horas de espera, sem comunicação via rádio que nos pudesse valer. Recolheram-nos no regresso e chegámos a Gago Coutinho ainda o sol brilhava.
A surpresa aconteceu no Sessa. Colocaram o nosso grupo de combate naquele Posto Administrativo onde existia, para além do chefe de posto e esposa, dois polícias. A defesa das populações estava a cargo de uma milícia preparada militarmente pelo chefe de posto com boa atuação tática na aproximação de objetivos. O Sessa estava muito isolado mas bem defendido pela milícia, todos eles pertencentes ao povo local. Não tinham a nossa presença como necessária. Víamos apresentarem-se no Posto, diariamente, 15 a 20 refugiados na sua maioria mulheres e crianças doentes, inchadas, subalimentadas, necessitadas de assistência. Era-lhes logo fornecido a fuba (farinha de milho), base da sua alimentação, e medicamentos. A parte humanitária não fôra esquecida pela administração portuguesa daí o elevado número de refugiados que diariamente se apresentava no Posto. Tudo funcionava naquela estrutura administrativa. Como iriam reagir quando soubessem da presença da tropa portuguesa? Uma incógnita, que, passados dias se clarificou confirmando os receios já expostos pelo administrador. O número de apresentações foi rareando até quase se extinguir.
Na guerra subversiva quem tem a população do seu lado adquire vantagem no terreno. Se fôr o governo a ter a população sob controlo os elementos subversivos ficam à deriva sem apoio na sua subsistência itinerante e serão facilmente localizados e seguidos pelas forças governamentais através da rede de informadores que é montada.
 Para nossa surpresa encontrámos um comerciante residente. Tinha-se fixado ali, no Sessa ído do Muié, quando este Posto Administrativo foi totalmente abandonado, quer pela população nativa, quer pelos comerciantes. O pessoal que colaborava na Missão e no Hospital desapareceu levada pelos guerrilheiros para as matas, e a casa do chefe do Posto foi ocupada por um grupo de combate reforçado das nossas forças.
Não sabiamos como aquele comerciante era abastecido de mercadoria. Provavelmente aventurava-se nas picadas, porque os camionistas só viajavam com escolta militar e o Sessa não constava nas rotas do abastecimento. O dito comerciante fiava mercadoria à milícia com a promessa de pagamento logo que começassem a receber um quantitativo mensal que fora prometido pela administração portuguesa sob palavra do chefe do Posto, mas tal pagamento nunca aconteceu. O caso agudizou-se quando em definitivo se soube que essa promessa nunca seria cumprida e o comerciante arcou com o prejuízo.
 Daí a um tempo o chefe do Posto foi transferido. Perdera-se um líder carismático da mais alta importância na prossecução de políticas de recuperação de populações que se estava a tentar levar a efeito na região pela administração portuguesa. Dias depois deste acontecimento o comandante do nosso grupo de combate, alferes Castro, recebeu ordens para regressar a Gago Coutinho. Ía comandar a Companhia na ausência do capitão que fôra ferido com gravidade durante uma operação. Fôra evacuado de helicópetro para o hospital do Luso. O seu estado de saúde inspirava cuidados, só regressando à companhia quase no final da comissão.
Semanas depois fomos nós que regressámos a Gago Coutinho. A situação no Sessa tornara-se piriclitante. Sem a liderança do chefe de Posto e a milícia insatisfeita sem vontade de intervir, como já tinha demonstrado nos últimos dias da nossa permanência, a população corria o risco de ser abordada pelos guerrilheiros e convencida a regressar às matas.
Almoço comemorativo do 1º. ano de Comissão
O que se sabe é que, após a tropa ter saído do Sessa, a milícia continuou a exercer o controlo da região com a colaboração da população na deteção de grupos de aproximação.

Estávamos em Julho do ano de 1968 quando o comando do Batalhão quis comemorar um ano de comissão. Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo) não se engalanou, mas sentíamos que esse dia era na verdade um dia para comemorar. Vestimos no melhor rigor que era permitido: uma farda limpa, bem engomada. De duche tomado, espírito aberto e otimismo a rodos sentámos à mesa para almoçar e confraternizar. O rancho fôra melhorado. Receios e saudades não foram tema. A conversa se animou como sempre acontecia nas festas comemorativas, lembrando uns, calando outros, a péssima certeza de que havia outra eternidade para o regresso definitivo à Terra, à Família, ao Futuro.
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