Memórias e Raízes

quinta-feira, dezembro 01, 2016

NAS PLANURAS DO MOXICO II -1968-NOS CUS DE JUDAS

A rotação das companhias operacionais do Batalhão de Caçadores 1920, (vidé post "Nas Planuras do Moxico"), ía fazer-se faseadamente para não desguarnecer os quartéis. A Companhia 1719 estacionada no Lucusse, a que eu pertencia, renderia a 1721, estacionada no quartel / sede do Batalhão em Vila Gago Coutinho, hoje Lumbala N' Guimbo, que dista 70 kms da República da Zâmbia. Das três companhias operacionais do Batalhão, a 1721 era a mais stressada. Esteve sujeita durante sete meses aos ataques de surpresa da guerrilha quando se deslocava no abastecimento aos quartéis sob a sua logística.
Antes de deixarmos o quartel do Lucusse houve a preocupação de se erguer um memorial aos três companheiros lamentavelmente falecidos em dois acidentes. A sorte ditou a primeira baixa da Companhia. O disparo de uma G3 atingiu mortalmente um camarada quando decorria a limpeza das armas em vésperas de sairmos para o Lumbala, no saliente do Cazombo. O segundo acidente aconteceu nos morros do Cazombo, a norte do Lumbala, cinco meses depois, com o óbito de mais dois companheiros atingidos pelo rebentamento de uma armadilha ali montada pelas forças especiais para defesa daquele local durante as horas que ali íam permanacer. Uma palavra de agradecimento e reconhecimento aos valorosos enfermeiros que, no local e com parcos meios, tudo fizeram para aliviar o sofrimento dos feridos naquela noite fatídica.
Íamos deixar o quartel do Lucusse sete meses após a nossa chegada. A povoação, de numerosos quimbos (cubatas), a população, calculada em mais de mil individuos, ocupava vasta área. Dois comerciantes portugueses permaneciam de pedra e cal. Ao recordarmos este vasto período de sete meses de intervenção da Companhia, logo nos ressalta as operações militares no Lumbala, no saliente do Cazombo, onde o grande rio Zambeze nos oferecera a visão serena do seu estuário e o uso seguro da sua praia fluvial, quando, após caminhadas de dias, cansados e sedentos, mergulhávamos nas suas águas. Caminhadas aparentemente sem rumo nos quarenta dias que permanecemos nas suas margens sem vermos viv´alma. A região é de facto verdadeiramente despovoada. Só as manadas de nunces dão vida às chanas (anharas, savanas) esquecidas pelo homem, perseguidos tenazmente por incansáveis predadores. No trilho Lucusse/Lumbala permaneciam abatizes, (árvores derrubadas sobre o trilho) do início das hostilidades (1966) com novos trilhos a cortorná-los.

O meu grupo de combate foi a primeira tropa da Companhia 1719 a seguir para Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo) sob o comando do alferes Castro, quando do início da rotação das companhias operacionais do Batalhão. Fomos render um grupo de combate da Companhia 1721 que seguiu para o Luvuei e seu destacamento no Lutembo.
Na região de Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo), conhecida pelos militares por "os cus de Judas", a preocupação era enorme. Dois movimentos digladiavam-se entre si e ambos opunham-se tenazmente à tropa portuguesa. Eram guerrilheiros que tinham sob o seu controlo populações refugiadas nas matas. Sabiamos que a Companhia 1721 que estávamos a render sofrera fogo mortífero nas emboscadas a que foram alvo. As colunas de abastecimento saíam da Sede do Batalhão fortemente armadas com o unimog da metralhadora à frente montada num tripé com avental em aço para proteger o peito do apontador e do municiador que seguiam de pé prontos a disparar ao primeiro sinal de emboscada.
As chapas laterais em aço e o capacete metálico ofereciam proteção ao resto do corpo. A coragem destes homens que seguiam à frente da coluna era digna dos maiores elogios e reconhecimento de camaradas e do comando. Encabeçavam a coluna e constituíam o primeiro alvo das ações da guerrilha. A coragem não se aprende nos manuais de instrução, está dentro de cada um, nas motivações e no domínio do medo que cada um exerce sobre si. Naquela zona, de complexas picadas, que ligavam a Sede do Batalhão aos pequenos povoados de escassos quimbos que se mantinham junto aos quartéis e casas de chefes de posto a guerra mantinha-se acesa na perseguição a grupos armados pelas tropas portuguesas e auxiliares indígenas (Flechas, TES, GES), e em sentido contrário, de emboscada às colunas de abastecimento aos quartéis, cujo alvo era a tropa portuguesa e auxiliares indígenas que viajavam nas picadas: Ninda e seus destacamentos de Chiúme e Sete; Muié, o mais distante, de trilho arguto a impedir o avanço rápido dos unimogs que saltavam nas raízes que se salientavam no trilho quais cabras do mato em suas danças acrobáticas; Mussuma, destacamento avançado a sete kms da Zâmbia de escassa população que habitava 40 / 50 quimbos (cubatas) junto ao quartel e à casa do chefe do posto, a autoridade portuguesa na região, que surpreendentemente se mantinha ao serviço, apesar do risco de vida que corria.

Welvitchia Mirabilis
Quinze/vinte dias após ter chegado a Gago Coutinho, (Lumbala N´Guimbo), surgiu Março e as férias. Escusado será dizer que aguardava ansiosamente por esse dia. Ía reencontrar a família, ver amigos, assistir às "Festas do Mar". Era as festas de verão da cidade sob a sigla dos três Ms, (Moçâmedes, Mar e Março). Moçâmedes, cidade do sul de Angola recebia visitantes de toda a parte, num movimento inusitado ao deserto e às suas atrações, como o Oásis da
"Lagoa dos Arcos" ou "Arco do Carvalhão", conhecer a célebre Welvitchia Mirabilis, a planta endémica que só é encontrada naquele deserto e na Damarlândia, no Sudoeste Africano, visitar as amplas praias arenosas onde se praticava a caça submarina, conhecer a cidade e a animação da feira, assistir ao circuito automóvel que se tornara na maior atração das festas com a presença de alguns dos grandes volantes nacionais em confronto com os volantes locais e de outras cidades daquela ex-Província portuguesa. Fui renovando energias, mas o pensamento, esse bailarino errante, por vezes, fixava-se nas recordações mais recentes: a imagem daquela picada arenosa e quase a pino, a dificuldade em ultrapassá-la, os carros atascados, o guincho da berliet a puxá-los, a chana alagada, os unimogs atolados, os ramos debaixo de rodas, a tentativa de os fazer andar mais alguns metros, etc etc.
Os amigos de infância estavam todos lá. Deixámos de saber uns dos outros após termos sido chamados para as zonas de conflito. A grande maioria estava no Norte a cumprir os dois anos de comissão. Ninguém pensava no pior apesar de alguns terem passado por situações difíceis. Estávamos obrigados a cumprir um dever e teríamos de permanecer até nos mandarem para casa.
O que sabe bem pouco dura. Em vésperas de tomar o "friendship"  de regresso a Gago Coutinho, despedi-me de alguns amigos. Encontrei o Rato (Vítor Alves) na rua, trabalhava no despachante oficial sr. Radich. Tive no entanto tempo de desabafar umas palavras sobre a felicidade. Não sabiam a sorte de poderem olhar o dia seguinte com tranquilidade e com futuro. Despedi-me carinhosamente do meu Pai que a falta de saúde o debilitara fortemente. Dei-lhe palavras de conforto e de esperança, mas intimamente sabia que era a última vez que o via com vida.
Não havia voos diretos de Moçâmedes para o Luso. O avião fez escala em Luanda voando depois para o Luso. Do Luso para Gago Coutinho tencionava viajar no avião da Força Aérea Nord Atlas (barriga de ginguba) que transportava o correio e encomendas todas as terças feiras para várias localidades. Gago Coutinho encontrava-se na rota desse voo assim como Henrique de Carvalho (Saurimo) e Cangamba.
Para minha surpresa fui informado na secretaria do comando que o quartel do Lucusse, meu quartel anterior, tinha sido atacado por um grupo numeroso de guerrilheiros. Dista do Luso (Luena), 150 kms e isso constituia motivo de preocupação na cidade. Uma coluna de abastecimento (MVL) estava prestes a sair do Luso para Gago Coutinho passando pelo Lucusse e decidi ir nessa coluna. A escolta era feita por duas secções da minha companhia que se mantiveram no Lucusse com o capitão para fazerem a entrega do quartel à companhia que nos rendera. Esta viagem fecharia a rotação das companhias operacionais do Batalhão. Apanharíamos o capitão no Lucusse que viajaria connosco e com o que restava da companhia para Gago Coutinho. No dia aprazado para o MVL (Movimento de Viaturas Ligeiras) apresentei-me ao comandante de escolta. Vinha sem arma e um soldado emprestou-me uma granada para que não ficasse sem defesa em caso de emboscada. Não vi o camionista sr Artur Alves naquela viagem. Provavelmente não teria sido escalado pelos serviços do exército. Conheci-o quando pela primeira vez viajei naquela estrada Luso / Gago Coutinho, hoje Luena / Lumbala N´Guimbo na cabine da sua camioneta. (Vidé post anterior "Nas Planuras do Moxico")
A coluna chegou ao Lucusse sem novidade. O capitão ao me ver disse-me que vinha em má altura. Parecia preocupado com os dizeres de uma mucanda (bilhete) encontrada perto do quartel. Dizia que nos aguardavam  a 30 kms do Lucusse. Pareciam bem informados da viagem que estávamos a realizar. O capitão tinha passado um mau bocado no ataque ao quartel. Teve de rastejar até à saída da camarata debaixo de fogo intenso para entrar na trincheira que circundava todo o interior do aquartelamento a partir das camaratas. O ataque fora denunciado e perdida a surpresa.  O dispositivo de defesa anulou a tentativa de entrada no quartel e foi eficaz na reação ao fogo IN (inimigo) que vinha de fora do arame farpado.
O comando da coluna passou para o capitão que ordenou o disparo do morteiro 60, ora para a direita, ora para a esquerda da estrada, de modo a provocar um efeito psicológico negativo, de receio, a quem estivesse emboscado a poucos metros da estrada. Na realidade o estoiro da granada de morteiro impressiona pela audição, parece o rasgar de um pano que se ouve a algumas centenas de metros de distância.
Já perto de Gago Coutinho os carros da frente pararam de repente fazendo parar toda a coluna  Os militares saltaram dos unimogs e os camionistas saíram apressados das cabines das camionetes para se resguardarem nas bermas da estrada. Uma bandeira desfraldada não identificada sinalizava a presença de guerrilheiros na zona. Como levava uma máquina de filmar quis filmar aquela cena empolgante. Procurei o capitão que estava deitado na berma da estrada em posição de fazer fogo. A autorização foi concedida e pude filmar as primeiras cenas de um filme que serviria mais tarde para recordar aquela fase da minha vida de militar miliciano em cenário de guerra.
Passados uma meia hora de expetativa retomámos a marcha até Gago Coutinho sem que o IN (inimigo) se tivesse manifestado.

Dias depois começou a dança dos reabastecimentos. O primeiro foi ao Mussuma, que dista setenta quilómetros de Gago Coutinho (Lumbala N´guimbo) e sete da fronteira com a República da Zâmbia. Partimos de madrugada, bem cedo, com o propósito de regressarmos no mesmo dia, evitando dar tempo ao IN de preparar qualquer ação contra a coluna. A minha secção desceu no caminho com o objetivo de detetar a presença de algum grupo armado. Contavam que a aquela tática tinha sido adotada devido ao conhecimento de pontos sensíveis onde normalmente a guerrilha atuava. Tínhamos o aviso de que os confrontos já se tinham dado noutras ocasiões e de modo inesperado, o que equivalia a dizer que puséssemos toda a atenção no silêncio para não sermos pressentidos. Estávamos por nossa conta naquelas horas de espera, sem comunicação via rádio que nos pudesse valer. Recolheram-nos no regresso e chegámos a Gago Coutinho ainda o sol brilhava.
A surpresa aconteceu no Sessa. Colocaram o nosso grupo de combate naquele Posto Administrativo onde existia, para além do chefe de posto e esposa, dois polícias. A defesa das populações estava a cargo de uma milícia preparada militarmente pelo chefe de posto com boa atuação tática na aproximação de objetivos. O Sessa estava muito isolado mas bem defendido pela milícia, todos eles pertencentes ao povo local. Não tinham a nossa presença como necessária. Víamos apresentarem-se no Posto, diariamente, 15 a 20 refugiados na sua maioria mulheres e crianças doentes, inchadas, subalimentadas, necessitadas de assistência. Era-lhes logo fornecido a fuba (farinha de milho), base da sua alimentação, e medicamentos. A parte humanitária não fôra esquecida pela administração portuguesa daí o elevado número de refugiados que diariamente se apresentava no Posto. Tudo funcionava naquela estrutura administrativa. Como iriam reagir quando soubessem da presença da tropa portuguesa? Uma incógnita, que, passados dias se clarificou confirmando os receios já expostos pelo administrador. O número de apresentações foi rareando até quase se extinguir.
Na guerra subversiva quem tem a população do seu lado adquire vantagem no terreno. Se fôr o governo a ter a população sob controlo os elementos subversivos ficam à deriva sem apoio na sua subsistência itinerante e serão facilmente localizados e seguidos pelas forças governamentais através da rede de informadores que é montada.
 Para nossa surpresa encontrámos um comerciante residente. Tinha-se fixado ali, no Sessa ído do Muié, quando este Posto Administrativo foi totalmente abandonado, quer pela população nativa, quer pelos comerciantes. O pessoal que colaborava na Missão e no Hospital desapareceu levada pelos guerrilheiros para as matas, e a casa do chefe do Posto foi ocupada por um grupo de combate reforçado das nossas forças.
Não sabiamos como aquele comerciante era abastecido de mercadoria. Provavelmente aventurava-se nas picadas, porque os camionistas só viajavam com escolta militar e o Sessa não constava nas rotas do abastecimento. O dito comerciante fiava mercadoria à milícia com a promessa de pagamento logo que começassem a receber um quantitativo mensal que fora prometido pela administração portuguesa sob palavra do chefe do Posto, mas tal pagamento nunca aconteceu. O caso agudizou-se quando em definitivo se soube que essa promessa nunca seria cumprida e o comerciante arcou com o prejuízo.
 Daí a um tempo o chefe do Posto foi transferido. Perdera-se um líder carismático da mais alta importância na prossecução de políticas de recuperação de populações que se estava a tentar levar a efeito na região pela administração portuguesa. Dias depois deste acontecimento o comandante do nosso grupo de combate, alferes Castro, recebeu ordens para regressar a Gago Coutinho. Ía comandar a Companhia na ausência do capitão que fôra ferido com gravidade durante uma operação. Fôra evacuado de helicópetro para o hospital do Luso. O seu estado de saúde inspirava cuidados, só regressando à companhia quase no final da comissão.
Semanas depois fomos nós que regressámos a Gago Coutinho. A situação no Sessa tornara-se piriclitante. Sem a liderança do chefe de Posto e a milícia insatisfeita sem vontade de intervir, como já tinha demonstrado nos últimos dias da nossa permanência, a população corria o risco de ser abordada pelos guerrilheiros e convencida a regressar às matas.
Almoço comemorativo do 1º. ano de Comissão
O que se sabe é que, após a tropa ter saído do Sessa, a milícia continuou a exercer o controlo da região com a colaboração da população na deteção de grupos de aproximação.

Estávamos em Julho do ano de 1968 quando o comando do Batalhão quis comemorar um ano de comissão. Gago Coutinho (Lumbala N´Guimbo) não se engalanou, mas sentíamos que esse dia era na verdade um dia para comemorar. Vestimos no melhor rigor que era permitido: uma farda limpa, bem engomada. De duche tomado, espírito aberto e otimismo a rodos sentámos à mesa para almoçar e confraternizar. O rancho fôra melhorado. Receios e saudades não foram tema. A conversa se animou como sempre acontecia nas festas comemorativas, lembrando uns, calando outros, a péssima certeza de que havia outra eternidade para o regresso definitivo à Terra, à Família, ao Futuro.
.