Memórias e Raízes

quarta-feira, setembro 23, 2009

ORLOG - Servidor e Guerreiro Zulu-Uma Vida ao Serviço de Portugal

BREVE BIOGRAFIA DE ORLOG, o ZULU, por ANTÓNIO GAMA

Entre os auxiliares que tomaram parte nas Campanhas de Ocupação do Sul de Angola, o ORLOG foi sem dúvida, uma das figuras mais representativas, não só pelo dilatado período de tempo durante o qual serviu Portugal, como pela valentia e audácia com que o soube fazer.
Esta tradição de aproveitar as forças indígenas nas lides coloniais é entre nós muito antiga. Já Paulo Dias de Novais, primeiro Governador de Angola, havia lançado mão dos "empacasseiros" nas lutas travadas na bacia do Quanza, berço do nosso estabelecimento em Angola; e os Jagas, que, no dizer do campeador Baltazar Rebelo de Aragão, «é gente forasteira e que vive de roubar e fazer guerra».
ORLOG, chefe dos auxiliares indígenas, era um preto alto, seco, esbelto, Zulu de origem, que viera ainda criança para o Planalto da Huíla e esteve connosco nas Expedições do Sul de Angola, desde pelo menos a Campanha do Bié, em 1890.
Artur de Paiva desenha-o em quatro traços, salientando a impaciência do seu ardor combativo. Achavam-se as quatro peças de artilharia comandadas por Paiva Couceiro, Evaristo de Almeida, Paulo Ramalho e Quintino Rogado, em frente da libata do Bié, executando fogo. Mas eram já cinco da tarde e Artur de Paiva não queria que o assalto da infantaria se desenrolasse pela noite fora, pensando adiá-lo para a madrugada do dia seguinte, quando ORLOG se destacou dos seus auxiliares e, dirigindo-se-lhe, exclamou:
- Senhor, o dia acaba-se; é melhor saltar-mos lá dentro!
- Tens razão, rapaz, vamos a isso!
Cessou o fogo de artilharia, a infantaria armou baioneta. E, dentro de momentos, os paus da libata eram arrancados e os Vachimbas, como cães de fila, irrompiam no recinto da fortaleza indígena.
Um ano mais tarde, ORLOG achava-se encorporado nas temíveis tropas de Padrel que iam atacar o Humbe, tendo sido encarregado de convocar auxiliares indígenas para participarem das operações. «Neste mesmo dia»-diz Padrel, no seu relatório - «nomeei o pessoal para esse efeito, sendo encarregado da missão ORLOW (ORLOG), filho de Tom, que dispõe de grande influência entre os Muchimbas, partindo no dia seguinte para aquele concelho (Gambos), onde devia aguardar a chegada da expedição, juntamente com o grupo de Muchimbas que pudesse reunir, fazendo-lhe ciente, contudo, que a paga seria segundo o serviço que prestassem, e que essa ainda assim era feita em gado, se algum fosse apreendido aos revoltosos».
De facto à coluna juntaram-se, nos Gambos 500 Vachimbas, acompanhados não só dos indivíduos que os foram reunir, mas também de Kalenga, seculo da terra que habitavam. Postas as condições, que foram logo aceites pelos Vachimbas, o seculo Kalenga lembrou que estes haviam já tomado parte nas Expedições do Cubango e do Bié e pediu uma bandeira portuguesa para arvorar na sua terra «como reconhecimento da soberania portuguesa, por isso que ele e os Muchimbas se consideravam súbditos portugueses».
Desenrola-se a campanha e, batido o Humbe e a Donguena, Padrel vai ao encalço do rebelde Luhuma, resolvendo-se a atravessar o Cunene. Era a primeira vez que tropas portuguesas transpunham o rio misterioso e penetravam, em som de guerra, no Cuamato Grande.
À frente, a gente de ORLOG é que primeiro vai dar o arrojado passo. Um dos Vachimbas, porém, acobarda-se e hesita. ORLOG mete-lhe prontamente uma bala na cabeça. E todos passaram o rio sem mais hesitações!
A luta ia ser acesa: «Às oito horas da noite travou-se o combate geral, abrangendo a fuzilaria de ambos os lados um círculo de um kilómetro de raio. A artilharia entrou em acção que, ora de um, ora de outro, foi reduzindo o inimigo ao silêncio, o que de todo se verificou à uma da madrugada.
Mas uma das peças breve se inutilizava. As munições iam rareando. E, para completo agravamento da situação, dos 3000 auxiliares Cuanhamas que acompanhavam a heterogénia coluna, uns 2000 haviam-se posto em fuga!
«Estes homens» - conta o Capitão Luna de Carvalho, chefe do Humbe - «conquanto perigosos, mal pensavam que a sua retirada, incutindo ânimo ao inimigo, enfranquecia e intimidava alguns dos nossos, que não conseguiam ocultar o desânimo que se apoderavam; nesta ocasião revigorou o espírito a muitos, a abnegação e coragem do Tchiluanda, chefe dos Muchimbas , que, à frente deles protestou a sua lealdade, vituperou a cobardia dos Mu-cuanhamas, e, em altas vozes e significativos gestos, declarou que jamais nos abandonaria, por mais crítica e arriscada que fosse a nossa situação».
Não descansa um instante a febril e irreqieta actividade do ORLOG, para cuja alma de lutador a guerra era a situação natural e favorita. Nos intervalos da paz, ORLOG, não podendo viver nem fazendo viver aqueles que haviam agregado os seus destinos ao dele, penetrava nas terras dos negros pacíficos e talava e roubava como conquistador.
Em Maio de 1900, o governo de Moçâmedes recebeu acusações de W. Chapman e de Jan Robertze contra as extorções de ORLOG, chefe de várias tribos de Boxímanes. Ouvido Artur de Paiva, este confirmou a verdade das queixas e informou que, tendo mandado intimar ORLOG a restituir o gado, havia recebido dois enviados Vachimbas comunicando que as cabeças roubadas tinham sido imediatamente entregues. E Artur de Paiva aproveitou o ensejo para indicar o seu ponto de vista acerca de ORLOG: «o que ORLOG está praticando, e com mais frequência desde o falecimento do Tenente Quintino Rogado, não é mais extraordinário do que as correrias periódicas dos Cuanhamas, com a diferença porém de que ORLOG roubava por necessideade, o que não acontecia com os outros potentados. ORLOG dispunha de gente bem armada e municiada, contando um bom número de atiradores excelentes. Para o destruir seriam precisos muito dinheiro e vidas. A sua táctica de se conservar sempre em movimento, passando ora para cá, ora para lá, o rio Cunene, dificultaria as operações contra ele dirigidas. E, sendo assim, mais valia tomá-lo ao nosso serviço, constituindo uma espécie de corpo de auxiliares que fariam a polícia do distrito e poderiam opor-se às correrias dos Cuanhamas, ideia que pelo próprio ORLOG seria aceite com entusiasmo.
«ORLOG! É um nome de guerra. é o terror dos Gambos e do gentio aquém Cunene!». Assim o apontava Roçadas, sob cujas ordens por mais de uma vez servira, e que conhecia bem a sua dedicação e coragem. A sua idade devia andar pelos 50 e os 60 anos. A sua gente são os Muchimbas e os Herreros, fugidos há anos da Damaralândia. As suas terras os montes dos Cubais. O seu viver a luta com o gentio, para o sustentar a si e à gente que o acompanhara!
Roubava. A sua valentia, em tempo de guerra, era tão grande como em tempo de paz a sua crueldade, que só tinha por limites a fazenda e a vida dos brancos. O grande auxiliar, que tantos e tão relevantes serviços prestara às nossas armas, andava por vezes perseguido e só encontrava refúgio além fronteira, onde só desenvolvia política oposta à nossa. Mas nunca ORLOG por ela se deixou tentar ou seduzir. Na primeira oportunidade apresentava-se a oferecer-se a si e aos seus para os mais duros e ásperos serviços. Em 1905 quando Roçadas assumiu o governo da Huíla, andava ORLOG a monte com os seus Vachimbas, Mucancalas e Herreros, de parceria com Candar, soba revoltado dos Gambos. Num ataque à embala do rebelde havia sido derrotada uma companhia indígena. Emissários da parte do governador foram convidá-lo a comparecer, sob promessa de ser acolhido sem qualquer castigo. Um dia, no Lubango, receberam a notícia de que se queria apresentar. Uma bela manhã, uma multidão de Mucancalas, Boxímanes, Berg-dâmaras e Muchimbas, com os seus chefes e ORLOG entre eles compareceram, numa data aprazada.
Roçadas mandou-o entrar na residência. Tremia como varas verdes, certamente no receio de alguma cilada. Veio vinho generoso. Ambos beberam. E ORLOG entrou de novo, submissamente, ao serviço de Portugal.
Na campanha de 1906, pela qual se fixou na margem esquerda do Cunene o Forte Roçadas, ORLOG esteve de novo connosco. Um reconhecimento ao interior do Cuamato fora ordenado, constituído pelos auxiliares Boers e Portugueses, uma força de Dragões e auxiliares Vachimbas. A acção foi dura. E os Vachimbas fortemente dizimados. A retirada impôs-se, como única salvação, à frente da massa aguerrida dos Cuamatos. E nessa retirada precipitada, foi ORLOG, como veremos, quem salvou a vida de Bartolomeu de Paiva, que tombara no chão com a sua montada.
«Destemido, autoritário com os seus, cruel mesmo para manter entre eles a disciplina, é extremamente dedicado e singularmente respeitoso para com os brancos portugueses, especialmente se estes envergam farda»
Roçadas manifesta por este valente auxiliar uma decidida predilecção, lamentando que nos intervalos das campanhas fosse posto em condições de roubar para viver.
Estivera na árdua campanha de 1907, no serviço avançado da expedição que sucessivamente dominou o Cuamato Pequeno e o Cuamato Grande, após a qual, em reconhecimento dos seus serviços, foi nomeado chefe do Corpo de Polícia, criado para o Planalto da Huíla.
No ano seguinte João de Almeida reconhecia os serviços que os auxiliares poderiam prestar, tanto em tempo e paz como em tempo de guerra, e pensava no seu aproveitamento.
De facto, daqui resultou um corpo de irregulares, cuja actividade chegou a ser ainda devidamente regulamentada e aproveitada. Mas tal organismo foi de pouca duração; e, quando Roçadas, em 1914, voltou ao Sul de Angola, já ORLOG andava de novo a monte. Extinto aquele corpo de polícia, ORLOG foi posto à margem, e o velho servidor e guerreiro teve de recorrer à rapina para se sustentar e aos seus.
Ao passar nos Gambos, Roçadas chama-o, mais uma vez; e o velho chefe Zulu acode pressurosamente a pôr-se ao serviço das armas portuguesas.
Roçadas, como a despedir-se do seu auxiliar, deixou no relatório de 1914 um largo relato das suas façanhas «para que os governos não esqueçam e a posteridade conheça o nome daquele que, embora de raça negra e de país estranho, tão dedicadamente serviu a nação portuguesa nas guerras coloniais dos últimos tempos».
A paz veio, finalmente. ORLOG e os seus Vachimbas era agora um anacronismo na calma que reinava em todo o Sul de Angola. As autoridades civis não suportavam a sua irrequietude. Tornara-se um indesejável. A sua cabeça andava a preço. E, em breve, a horda dos seus guerreiros se viu, mais uma vez, na dura necessidade de passar o Cunene, que tão eficazmente um dia haviam ajudado a atravessar!
Mas, apesar de tudo, o coração de ORLOG mantinha-se fiel. E, a cada momento, chegavam de além fronteira os seus protestos de lealdade e arrependimento, os pedidos de fixação em território português, agora que os anos pesavam esmagadoramente sobre a sua cabeça e a morte se avizinhava dele a passos largos.
Até que esta chegou, apagando da retina do velho Zulu a imagem querida das terras do Sul de Angola, onde, como os Jagas de outrora, «gente escoteira que vive de roubar e fazer guerra», os seus guerreiros empenachados passam em horríveis correrias, consumando a justiça do branco, implacável e vingadora!