Memórias e Raízes

quinta-feira, agosto 31, 2006

OS OLHANENSES A SUL DE BENGUELA

A fama do povo olhanense como povo navegador passou fronteiras no séc. XVIII. Eram eles que melhor conheciam o mar, pelas viagens de longo curso que faziam nos seus caíques, palhabotes e lanchas. Sabe-se que realizaram viagens ao Brasil na tarefa de colonizar, sem contudo deixarem memória desses factos. Agiam por conta própria numa predisposição natural ao apelo do mar.
As populações do litoral algarvio, desde há milhares de anos, têm sido tocadas por grandes civilizações oriundas do mediterrâneo, que construíram os seus impérios comerciais instalando feitorias. Algumas delas transformaram-se em importantes centros urbanos, como a fenícia Carteia, hoje Quarteira, ou Portus Anibalis, a actual Alvor ou Portimão, fundada pelo célebre general cartaginês Aníbal, ou Ossónoba (Faro), cidade romana com bispado, representada nos Sínodos, cujas actas se encontram depositadas nos arquivos da Universidade de Salamanca e é mencionada pelos maiores historiadores romanos, Silb (Silves), no Al-Gharb muçulmano, cidade luz da cultura árabe, tal como foi Córdova, Granada e Sevilha.
Olhando a história, ela leva-nos a admitir que o géne navegador e comercial dos fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes, deixado nas praias algarvias, possa ter como principal herdeiro o povo de Olhão, que demonstrou ser o mais capaz de realizar as missões mais arriscadas no mar e adaptar-se perfeitamente a novas difilculdades surgidas em terra, no contacto com outros povos, levando até eles o seu capital de experiência como navegadores, comerciantes e trabalhadores do mar, peritos no manuseio das artes de pesca e nas formas de conservar o peixe.
Depois da independência do Brasil em 1822, deu-se prioridade ao desenvolvimento das possessões portuguesas de África. Mais uma vez os olhanenses responderam com a sua experiência. Em meados do séc. XIX, o chamado terceiro império, o Império Português de África estava em marcha. O esforço colonizador tinha-se iniciado. Era necessário povoar esses territórios e desenvolvê-los para que Portugal recuperasse a força de Potência Colonizadora de outros tempos.
A partir de 1860 os olhanenses iniciaram uma forte corrente migratória para a Vila de Moçâmedes, a sul de Benguela, hoje cidade do Namibe na República de Angola.
Muitos caíques, palhabotes e lanchas à vela partiram do porto de Olhão com destino a Moçâmedes, em viagens arriscadas que duravam mais de 40 dias. As embarcações eram frágeis cascas de noz reforçadas prèviamente a cobre, sujeitas a inspecção e autorização de saída por parte da capitania. Era necessário dotar aquelas "quengas" (metade de 1 côco, na gíria brasileira) de toda a segurança possível, pois a mulher olhanense, a companheira de todas as horas dos seus maridos, fossem elas boas ou más, íam também elas embarcar com os seus filhos de tenra idade, e partilhar sofrimentos e perigos, tornando cada viagem num épico-familiar, cujo final ninguém conseguia prever.


O primeiro caíque referenciado, já em carreiras de cabotagem entre Moçâmedes e Benguela, data de 1855 e chamava-se "Os 2 Amigos". Não há registo da sua entrada na capitania de Moçâmedes e desconhece-se o nome do seu proprietário. Os registos iniciam-se com a entrada da barca D. Ana em 1860 comandada por José Guerreiro de Mendonça. Tem como piloto José Guerreiro Nuno. Levava a bordo Francisco de Sousa Ganho e esposa Maria Catarina Peixe, Francisco de Sousa Ganho, filho de ambos com 9 anos, António de Sousa Ganho, irmão do primeiro e José Carne Viva, levando a 1ª. canôa de pesca do alto. São considerados como a primeira leva da corrente migratória que se gerou a partir de Olhão para a então Vila de Moçâmedes.

A segunda leva foi composta por José Rolão e dois filhos João da Cruz Rolão e Francisco da Cruz, Manuel Tomé do O, Domingos Galambas e José Mendonça Pretinho. Ignora-se qual o barco que os transportou.

Na terceira leva, levada pelo vapor "D. António" em carreira regular para África, segue a primeira rede de pesca. Um dos emigrantes, João da Rosa Machado é considerado o primeiro que se estabeleceu na Baía dos Tigres. Chegaram em Julho de 1861.

O primeiro caíque registado na capitania de Moçâmedes foi o Flor de Maio com chegada em Janeiro de 1863. Tinha como tripulação o mestre Bernardino do Nascimento, vulgo o Brancanes, o piloto Pedro José dos Reis, Francisco Ferreira Nunes, Manuel Ramos de Jesus Peleira e um menor de nome Baptista.

Nesse mesmo ano começam a chegar olhanenses a Porto Alexandre, hoje cidade de Tômbua, a 100 kms a sul de Moçâmedes. A corrente migratória continuou por muitos anos, quer em barcos à vela quer em vapôres. Em 1894 há nos Tigres 7 casais olhanenses e em Porto Alexandre 200 pescadores algarvios, na sua maioria olhanenses. O porto de chegada era o Bairro Torre do Tombo, a 1 km. da vila de Moçâmedes. Dali irradiavam para todo o distrito onde existisse uma praia: Porto Alexandre, Baía dos Tigres, Baba, Chapéu Armado, Lucira, Mocuio, Baía das Pipas, Praia do Catara, S. Nicolau, Porto Pinda, Praia do César, etc.; algumas delas sem água potável, que eram logo abandonadas até se organizarem carreiras regulares de abastecimento, quer de água potável, quer de pão fresco. Os dias de chegada desses abastecimentos eram chamados, "os dias do pão fresco", e podemos imaginar quão especiais eram esses dias para aquelas gentes, em locais isolados como Porto Alexandre e Baía dos Tigres, quase na Foz do Cunene, cujo clima era ainda mais agreste, com as célebres garrôas, o vento do deserto, a levantar a areia das dunas que picava a pele como alfinetes, dificultava a respiração e fustigava dias a fio as casas de madeira, abrindo frestas, por onde as areias entravam e se depositavam nos móveis e nas camas. Era, na verdade desesperante o desterro daquelas famílias na Baía dos Tigres.


Em Porto Alexandre a vida tornou-se mais fácil, quando plantaram fiadas de casuarinas que aparavam os ventos do deserto e evitavam o avanço das dunas.

Porto Alexandre, hoje Tômbua tornou-se numa cidade industrializada dos derivados do peixe. Chegou a ser nos anos 1960 um dos maiores centros piscatórios da África Ocidental, com dezenas de fábricas de farinhas e óleos de peixe, e grande centro conserveiro.

A Baía dos Tigres só teve água potável nos anos 1950, levada do Rio Cunene, 60 Kms. de condutas. Nunca passou duma aldeia de pescadores com uns 500 habitantes, entre brancos e pretos, devido ao isolamento e ao clima agreste. As viagens por terra eram conseguidas por jeeps em baixa mar, aproveitando a areia endurecida e molhada da maré. Nada mais existia para além das dunas altaneiras de areia solta e o mar. Era uma viagem arriscada que alguns aventureiros tentavam, por vezes sem sucesso. A comunicação com a Baía dos Tigres passou a fazer-se por avioneta (correio e passageiros). Acabaram por construir uma igreja, uma escola primária, um hospital, os correios, a casa do chefe do posto e uma rua que era também a pista para a avioneta. As casas eram construídas em cima de pilares, para que as areias levadas pelo vento da garrôa passassem livremente.

A todas aquelas vicissitudes os olhanenses foram resistindo ao longo do tempo. Os homens, as mulheres, as crianças. A Baía dos Tigres foi o limite das forças, do querer, da resistência humana, nos seus primeiros tempos. Sobrevivia-se mal e as eventuais ajudas muito distantes. Não posso deixar de admirar a força da mulher olhanense, o que ela representou nos primeiros tempos de povoamento, o esforço pioneiro partilhado, ao lado dos seus maridos e filhos. Era na verdade gente muito especial. Apetece dizer que os olhanenses desafiaram e venceram o deserto na Baía dos Tigres, o sítio mais isolado e agreste do deserto do Namibe.

19 Comentários:

  • Força!
    Continue meu amigo!!!

    Por Anonymous Anónimo, Às 2:14 da tarde  

  • O blog está óptimo. Parabens!

    Por Anonymous Anónimo, Às 2:12 da manhã  

  • O blog está óptimo. Parabens!

    Uma conterrânea

    http://www.flickr.com/photos/ajardim3

    Por Anonymous Anónimo, Às 2:14 da manhã  

  • Agradeço ajardim3 as photos que vêm enriquecer sobremaneira o blogue e a sua divulgação.
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 12:42 da manhã  

  • Amigo Cláudio Frota : Gostei de ler a tua narrativa e a propósito gostaria que lesses o livro que escrevi exclusivamente sobre moçâmedes com o título " Memórias de Angra do Negro ".
    No meu livro publico a origem dos nomes de todas as localidades do distrito de moçâmedes hoje provincia do namibe.
    Trata-se de um livro semi didáctico que penso que teria interesse leres , já que diz respeito à tua terra.

    Por Anonymous Anónimo, Às 9:53 da tarde  

  • Sr. Cristão:
    Tenho de lhe dar um grande abraço pela obra que realizou, porque vem preencher uma lacuna que há muito se vinha a fazer sentir na história de Moçâmedes no que diz respeito ao sec.XX. Alguns dos nomes lá referenciados já tinha ouvido falar deles pela família mais velha. A parte económica foi uma surpresa tanta informação, e ainda a parte desportiva pelo Sr. Guedes desde os primeiros dirigentes e atletas até aos nossos dias. Estão de parabéns. Tenho recomendado o vosso livro.
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 10:56 da tarde  

  • Caro Cláudio Frota
    Descobri o seu blogue e gostei muito da informação sobre um aspecto pouco divulgado da História dos Olhanenses: o povoamento do sul de angola! Repare que eu sou o presidente duma associação de defesa do património de Olhão que tem uma página www.olhao.web.pt com alguma história mas quase sem informação sobre este capítulo. Gostaria de o convidar a enviar-me um texto sobre este assunto para o colocar na página em seu nome. Pode ser?
    António Paula Brito
    ( apos@olhao.web.pt )

    Por Blogger Unknown, Às 11:01 da tarde  

  • Agradeço ao Sr. António Paula Brito a sua intervenção no blogue. Dentro em breve entrarei em contacto consigo.
    Clàudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 4:26 da tarde  

  • Boa tarde

    Fiquei muito feliz ao ler o nome de um familiar que ficou perdido no tempo - José Carne Viva.
    Dele só ficou o nome e algumas histórias.
    Se souber algo mais de José Carne Viva era com a maior satisfação que recebia essa informação.

    Gilberto Carvalho
    gilberto.carvalho@chs.min-saude.pt
    susana.vieira007@gmail.com

    Por Anonymous Gilberto Carvalho, Às 5:10 da tarde  

  • Cláudio Frota dou-lhe os meus parabéns por ter tido esta iniciativa, pois requer muito trabalho e tempo.Queria dizer-lhe que fiz parte da tal equipa de juvenis pertencente à Mocidade Portuguesa, que se sagraram campeões nacionais de basquete juvenil, tendo sido a final disputada em Lisboa. A constituição da equipa era a seguinte:Helder Canhôto,Custódio Teixeira, Totta, Jorge Cruz, Pinto, Carlos, Elisio "Treinador" e Cecílio Moreira O Dirigente.

    Por Anonymous helder Canhôto, Às 9:58 da tarde  

  • Senhor Gilberto de Carvalho:
    De momento não tenho qualquer informação dos Carne Viva. Anotei a sua pretensão e pode ser que junto daqueles que conheceram bem as gentes do distrito de Moçâmedes possam colher alguma ajuda.
    Um abraço,
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 4:47 da tarde  

  • Meu caro Helder Canhoto:
    Sei que foste um grande atleta com qualidades demonstradas não só como basquetebolista mas também como futebolista. Obg. pela informação sobre esta vitória do desporto moçamedense por terras da metrópole que vem confirmar da qualidade do trabalho desenvolvido nas escolas dos clubes à iniciação dos jovens atletas.
    Um abraço,
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 5:12 da tarde  

  • A referida equipa de juvenis que pertenceu à Mocidade Portuguesa, que se sagraram campeões nacionais de basquete juvenil, era de Sá da Bandeira da escola Preparatória Marquês de Sá da Bandeira?? O meu nome é Artur Maia e tive um colega chamado canhoto e outro Totta na Escola Marquês !! Serão os mesmos que aqui estão referenciados na referida equipe de basquete Juvenil!! Este é o meu mail - amaia@tcpi,pt

    Por Blogger Unknown, Às 1:13 da manhã  

  • A referida equipa de juvenis que pertenceu à Mocidade Portuguesa, que se sagraram campeões nacionais de basquete juvenil, era de Sá da Bandeira da escola Preparatória Marquês de Sá da Bandeira?? O meu nome é Artur Maia e tive um colega chamado canhoto e outro Totta na Escola Marquês !! Serão os mesmos que aqui estão referenciados na referida equipe de basquete Juvenil!! Este é o meu mail - amaia@tcpi,pt

    Por Blogger Unknown, Às 1:13 da manhã  

  • amaia@tcpi.pt se forem os tais atletas por favor digam alguma coisa !!! Um abraço

    Por Blogger Unknown, Às 1:18 da manhã  

  • Sr.Artur Maia:
    Obg.pelo seu comentário. Conheci estes dois atletas já adultos no futebol e no baskete em Moçâmedes. Essa equipe de juvenis representava a Mocidade Portuguesa de Moçâmedes. Eles residiam naquela cidade.Ao seu dispor para mais alguma informação. Abraço.

    Por Blogger Cláudio Frota, Às 9:33 da manhã  

  • Meu caro
    Peço-lhe que entre em contacto comigo:
    nicolae.santos@gmail.com
    Obrigado
    Um abraço

    Por Blogger Nicolae Santos, Às 4:42 da tarde  

  • Boa noite caros amigos da minha terra.
    É com imenso prazer e orgulho que me junto a vós,podendo desta forma dar os parabéns a quem teve a iniciativa de partilhar tais memórias.
    MUITO OBRIGADO

    Rui Peleira

    Por Blogger Rui Peleira, Às 4:06 da manhã  

  • Ola Claudio Frota; sou angolano e residente em Portugal, sou natural de moçamedes actual Namibe, estudante de História Moderna e Contemporânea,estou a elaborar um projecto de investigação sobre o povoamento branco em Moçamedes e o desenvolvimento da actividade piscatória em toda extensão daquele distrito; nos finais do sec 19 e principio do sec 20..Gostaria imenso de contar com a sua prestimosa coloboração na abardagem desta tematica bem como levar-mos tambem o testemunho dos netos e bisnetos destes pescadores de maneira a repormos a verdade cientifica...
    meu email; kalianguila1976@gmail.com
    saudações. aguardo seu contacto

    Por Blogger Isaac Kalianguila, Às 7:28 da tarde  

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