JANEIRO DE 1893-A GRANDE VIAGEM E MOÇÂMEDES, NOVO BERÇO FAMILIAR
Foram inúmeras as viagens que os olhanenses fizeram para o sul de Angola. Serviram-se de canoas de pesca, de palhabotes de transporte e de caíques que eram utilizados na pesca e sobretudo no comércio marítimo. Os vapores, em carreiras regulares, levaram muitos povoadores na expectativa de um melhor futuro. Os barcos de pesca, as linhas de pesca, as redes e as diversas artes que existiam na época foram transportados pelos seus proprietários na certeza de melhores dias. Não fora a audácia dos pioneiros algarvios que ousaram transpor o mar e levantarem uma indústria na costa de Angola, a sul de Benguela, pouco se teria feito.
Nas histórias que se contam não se procura enfeitar realidades ou enfatizar pormenores. Na paz serena do dever cumprido, as gerações mais velhas contam o que há para contar, entre reflexões e reflexões, sobre vidas consumidas na labuta diária árdua, em lugares remotos e em condições de vida difíceis de suportar; uns, em empresas criadas por empreendedores audaciosos; outros, em trabalhos por conta própria. O que era necessário fazer, fez-se. Os capitais foram surgindo no investimento em consequência das valias do progresso. As gerações seguintes encontraram os alicerces firmes de uma casa em construção; e quem constrói uma casa constrói a vida, algo de definitivo e seu, transforma o meio, usufruindo-o em cada dia numa progressão imparável, onde se constrói o futuro e se modela a alma.
O barco que levou os meus avós em Janeiro de 1893 na grande viagem para África, bem podia ter sido o caíque Judith do mestre Sebastião dos Reis, pela coincidência de datas entre o dia do início das operações de cabotagem por aquele caíque na costa angolana, (24 de Fevereiro de 1893), com a época de chegada dos meus avós ao porto de Moçâmedes, cuja data se situa também na segunda quinzena desse mês e ano. Era um caíque modesto com 17,5 metros de comprimento e cerca de 40 tons. de porão.
O que se sabe, na verdade, é que o barco da grande viagem dos meus avós para África, partiu do porto de Olhão, talvez do cais "bate estacas" junto à praça do peixe num dia de Janeiro de 1893. A bordo, íam três passageiros especiais para a família Santos e para a família Frota, todos eles naturais de Olhão: a Carolina de 21 anos de idade, o Manuel de 24 e o pequeno Manuel de 18 meses, filho de ambos. Navegaram 41 dias pelo Atlântico até aportarem Moçâmedes, a actual cidade do Namibe, no sul da República de Angola, onde desembarcaram. Contava a minha avó Carolina que as fraldas do seu pequeno Manuel secavam no mastro daquele barco e o dia de embarque fora uma despedida definitiva à sua terra natal, à família e aos amigos que ficaram. Deixaram, também, as regalias que o "Compromisso Marítimo" oferecia aos mariantes e pescadores da vila nele inscritos: o médico, a botica e as ajudas nas aflições. Levavam a esperança de uma nova vida em África, a promessa de um advir mais promissor por terras de Moçâmedes. Não se conta qualquer facto relevante passado durante a viagem. Chegaram simplesmente ao porto de destino, sem sobressaltos, numa viagem tranquila. A terra era estranha, pisada pela primeira vez por aquele jovem casal na flor da idade e com um filho pequenino nos braços. Reencontraram o seu meio social, conterrâneos que labutavam por aqueles mares há alguns anos, uns, instalados na vila, capital do distrito que proporcionava melhores condições de estar, outros, nas praias isoladas, beneficiando dos abastecimentos que "os dias do pão fresco" veio trazer: a água potável transportada de Moçâmedes em pipas, em substituição da água salobra das cacimbas, (poços), escavadas na areia, e o pão fresco, também levado de Moçâmedes, em substituição da mandioca cozida, e outros géneros necessários à vida.
PRIMEIRO DESTINO: A BAÍA DOS TIGRES
Créditos de imagem: http://www.mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/
Nas histórias que se contam não se procura enfeitar realidades ou enfatizar pormenores. Na paz serena do dever cumprido, as gerações mais velhas contam o que há para contar, entre reflexões e reflexões, sobre vidas consumidas na labuta diária árdua, em lugares remotos e em condições de vida difíceis de suportar; uns, em empresas criadas por empreendedores audaciosos; outros, em trabalhos por conta própria. O que era necessário fazer, fez-se. Os capitais foram surgindo no investimento em consequência das valias do progresso. As gerações seguintes encontraram os alicerces firmes de uma casa em construção; e quem constrói uma casa constrói a vida, algo de definitivo e seu, transforma o meio, usufruindo-o em cada dia numa progressão imparável, onde se constrói o futuro e se modela a alma.
O barco que levou os meus avós em Janeiro de 1893 na grande viagem para África, bem podia ter sido o caíque Judith do mestre Sebastião dos Reis, pela coincidência de datas entre o dia do início das operações de cabotagem por aquele caíque na costa angolana, (24 de Fevereiro de 1893), com a época de chegada dos meus avós ao porto de Moçâmedes, cuja data se situa também na segunda quinzena desse mês e ano. Era um caíque modesto com 17,5 metros de comprimento e cerca de 40 tons. de porão.
O que se sabe, na verdade, é que o barco da grande viagem dos meus avós para África, partiu do porto de Olhão, talvez do cais "bate estacas" junto à praça do peixe num dia de Janeiro de 1893. A bordo, íam três passageiros especiais para a família Santos e para a família Frota, todos eles naturais de Olhão: a Carolina de 21 anos de idade, o Manuel de 24 e o pequeno Manuel de 18 meses, filho de ambos. Navegaram 41 dias pelo Atlântico até aportarem Moçâmedes, a actual cidade do Namibe, no sul da República de Angola, onde desembarcaram. Contava a minha avó Carolina que as fraldas do seu pequeno Manuel secavam no mastro daquele barco e o dia de embarque fora uma despedida definitiva à sua terra natal, à família e aos amigos que ficaram. Deixaram, também, as regalias que o "Compromisso Marítimo" oferecia aos mariantes e pescadores da vila nele inscritos: o médico, a botica e as ajudas nas aflições. Levavam a esperança de uma nova vida em África, a promessa de um advir mais promissor por terras de Moçâmedes. Não se conta qualquer facto relevante passado durante a viagem. Chegaram simplesmente ao porto de destino, sem sobressaltos, numa viagem tranquila. A terra era estranha, pisada pela primeira vez por aquele jovem casal na flor da idade e com um filho pequenino nos braços. Reencontraram o seu meio social, conterrâneos que labutavam por aqueles mares há alguns anos, uns, instalados na vila, capital do distrito que proporcionava melhores condições de estar, outros, nas praias isoladas, beneficiando dos abastecimentos que "os dias do pão fresco" veio trazer: a água potável transportada de Moçâmedes em pipas, em substituição da água salobra das cacimbas, (poços), escavadas na areia, e o pão fresco, também levado de Moçâmedes, em substituição da mandioca cozida, e outros géneros necessários à vida.
PRIMEIRO DESTINO: A BAÍA DOS TIGRES
Créditos de imagem: http://www.mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/
As memórias da minha avó Carolina indicam como primeiro destino a Baía dos Tigres onde deviam ter encontrado, já instalada, a "armação à valenciana" pioneira de Manuel Joaquim Frota, meu bisavô, pai do meu avô Manuel, armação levada de Olhão para Moçâmedes em 1887 e fixada posteriormente na Baía dos Tigres, em data indeterminada.
"Trabalharam juntos, pai e filho", contava um familiar, rebuscando nas memórias palavras ditas e histórias vividas anteriores ao seu tempo.
Contava a minha avó Carolina que conheceu a violência das garroas, o vento do deserto, que abria frestas na sua casa de madeira por onde entravam as areias das dunas, levadas por esse vento forte, trazendo desconforto ao pequeno Manuel, que sentia na camita as areias que se depositavam. (Nesta
imagem: nuvem de areia levantada pelo vento da garroa).
A minha avó, vigilante, ía sacundindo as roupas de cama do seu bebé Manuel, contava. Àquela praia, quase na foz do rio Cunene, já chegara os "dias do pão fresco", assim chamados os dias de chegada dos barcos das carreiras regulares de abastecimento às populações isoladas e dispersas pela costa, e a minha avó encomendava o leite em pó, o pão fresco de Moçâmedes, a água potável que vinha em pipas, os frescos. Por vezes a água era insuficiente e a solução era escavar na areia até se encontrar a água salobra que era consumida como último recurso. Segundo alguns livros, nessa altura, a população branca reduzia-se a sete casais de olhanenses, ou nem tantos, e era uma praia onde não se vislumbrava um ponto verde. Não existia lenha para cozinhar, serviam-se das cabeças de peixe seco como combustível para o fogão e para o aquecimento nos dias de inverno. É curioso notar a existência de cães selvagens, eram de grande porte e com bastante pêlo, cuja raça foi estudada muitos anos mais tarde. Originária da Terra Nova, Canadá, dóceis, quando criados em cativeiro junto do homem e adaptados à circunstância de terem de sobreviver naquele deserto. "Eram talvez sobreviventes de algum naufrágio", dizem uns, ou "foram levados pelos holandeses que conquistaram Angola, aquando do domínio filipino", dizem outros. O que é certo é que esses cães selvagens mantinham uma luta heróica pela sobrevivência, lambendo a película de água doce que existe à superfície do mar e alimentando-se do peixe que dava à costa, ou tentando abocanhar de surpresa os que nadavam perto, numa espera calculada. Esta foto representa uma duna "tigrada" que deu origem ao topónimo "Baía dos Tigres", antes chamada "manga das areias" http://www.mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/)
Os únicos animais selvagens que existem na zona. Não existem tigres. O nome, Baía dos Tigres, tem origem nas sombras projectadas nas dunas que mais parecem listas escuras semelhantes às listas que os tigres ostentam. Visão obtida do mar.
Decerto que o desencanto daquele lugar, o clima agreste bastante agressivo, a dificuldade de se obter o essencial para a subsistência familiar e o isolamento ter-lhes-íam provocado desilusões e ansiedades. A Baía dos Tigres não era a "Terra Prometida" que aquele jovem casal sonhara para realizar o seu futuro.
O segundo destino foi Porto Alexandre, hoje, cidade de Tômbua onde permaneceram alguns anos. Um familiar refere-se a uma "concessão régia", concedida ao meu avô ou ao meu bisavô, para instalar uma pescaria ou para construir uma casa. Anos mais tarde construíram uma escola nesse terreno. Porto Alexandre oferecia melhores condições de vida. A água potável chegava das margens do rio Curoca numa distância de cerca de vinte kilómetros. Era um rio seco mas facilmente se captava dos seus lençois subterrâneos a água potável necessária para abastecer uma população fixa já bastante numerosa de duzentos habitantes brancos e quatrocentos pretos. Havia também a água salobra das cacimbas (poços), que era consumida como último recurso, e os frescos chegavam mais amiúde por estar mais próximo as fontes de abastimento do povoado: as fazendas existentes nas margens do rio Bero na então Vila de Moçâmedes, hoje cidade do Namibe, e as fazendas das margens do rio Curoca que passaram também a produzir para o abastecimento da urbe em crescimento.
Os dois primeiros filhos nascidos em África, o Miguel e o José faleceram muito jovens. Foi uma época perturbada por esses acontecimentos que causaram grande sofrimento no seio da família e talvez por isso pouco mencionada.
Moçâmedes seria o destino definitivo do jovem casal.
No refazer caminhos quando os testemunhos directos já não se encontram entre nós, torna-se difícil obter datas certas dos acontecimentos ocorridos. O conjunto da informação fornecida pelos familiares mais velhos vem confirmar que os meus avós estariam fixados na Praia Amélia nos primeiros anos do séc XX. A Praia Amélia (assim chamada por ter sido aquela praia o local onde se afundou a escuna da marinha de guerra portuguesa "Amélia"), dista seis kms. do Bairro da Torre do Tombo, onde o pequeno Manuel dos Santos Frota, já adolescente, se inicia nos trabalhos da pesca com o seu pai. Namora a sua futura esposa Alda Ilha, (a tia Ada dos meus quatro anos), que vivia na Torre do Tombo, (as distâncias nunca foram um obstáculo às gentes desse tempo), e regressava à tardinha a casa, a pé, acompanhado pelo então jovem e futuro cunhado Rogério da Ilha, que por lá pernoitava regressando na manhã seguinte. Apraz-me aqui registar que eram também tios do ex-industrial de pesca, João Viegas Ilha, com pescaria no Canjeque, a dois Kms. do bairro da Torre do Tombo e com interresses em outras empresas do distrito, conta agora a veneranda idade de 80 anos, é de feitio amistoso e muito popular entre os seus conterrâneos, aberto às recordações de muitos acontecimentos da sua cidade; e de Zeca Ilha, comerciante, que acabou como proprietário, em sociedade com o seu irmão João Viegas Ilha, de uma das lojas mais conhecidas da cidade, a "loja do Jorge", atrás do Cine Teatro Moçâmedes. São descendentes de olhanenses moradores na Ilha da Culatra, que se situa frente a Olhão, daí o apelido Ilha, e de João da Rosa Machado, chegado em Julho de 1861, e considerado como o primeiro habitante da Baía dos Tigres.
Na Praia Amélia os meus avós vivem numa casa de madeira, tipo chalé, com varanda em toda à volta, que eram utilizadas na época. Passou a ser a segunda habitação familiar depois de se fixarem definitivamente na Torre do Tombo. Era ocupada aos fins de semana pela família nas suas deslocações a pé (seis kms.) Estava em bom estado de conservação nos princípios da década de 1930, como nos conta uma das netas.
(Essa casa de madeira era materialmente idêntica à casa dos meus avós maternos, João Rodrigues Trindade e Lucinda Ferreira Trindade, localizada na Torre do Tombo que chegou aos meus dias bastante degradada nos finais da década de 1950, tendo sido desmontada nessa época; ou , à casa de madeira da D. Aline com varanda em toda a volta. A D. Aline foi a professora da minha segunda classe na escola de Portugal. De dimensão espiritual elevada, era dedicada à educação de crianças e ao ensino. O significado das palavras companheiro, amizade, serviam para uma melhor consciência nas relações interpessoais entre os seus educandos, numa pedagogia assente em valores humanos e cristãos. «A oração da manhã é uma obrigação de todos os católicos», afirmava, sabendo que muitos dos seus alunos não tinham por hábito tal prática. Por isso recolhia-se nessa oração, diariamente, no início de cada aula, convidando os alunos que não a tinham feito a acompanhá-la. Essa casa de madeira era proveniente da Praia Amélia, segundo me foi dito, e situava-se na estrada de acesso à aguada e às hortas, num largo de terra, isolada, logo após o antigo campo de futebol, num dos extremos da cidade, demonstrada nesta foto, onde existia, ainda, a fechar a avenida, uma moradia onde funcionava o antigo colégio das madres das Irmãs Doroteias. Esta foto de 1950 foi encontrada no blog http://www.mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/. Aqui vemos a casa térrea onde morei até aos meus sete anos de idade situada em frente da casa da D. Aline e que foi arrendada ao meu pai pelo sr. Mário de Sousa, proprietário de uma oficina de automóveis e mecânico competente em motores marítimos. Daquela casa térrea saía todas as manhãs de bata branca, como era obrigatório na época para a escola nº. 49 para frequentar a primeira classe, cuja professora se chamava Salomé Mendonça.
A D. Aline era um raro exemplo de prática religiosa, afecta à religião católica, tornou-se símbolo de bondade e de caridade e é referida nas recordações de muitas gerações de moçamedenses pelas suas qualidades humanas. Parte da sua casa era cedida à actividade da catequese e no final dos trabalhos distribuia um papo-seco com marmelada a cada criança, fazendo as delícias da tarde às mais carenciadas. Promoveu, ainda, uma actividade escolar: os ensinamentos de uma primeira classe que antecipava o ensino oficial Bem preparados ficavam esses alunos, de tal modo que, quando do ingresso na escola oficial, a primeira classe era como que um "passear pela escola". Apesar do muito tempo já passado, recordo alguns desses companheiros de jornada. Entre outros que ainda retenho em memória as suas fisionomias mas não os seus nomes, o Laurentino Jardim (Tininho) e o Leonel de Sousa (Leona), este, infelizmente já falecido, prematuramente vencido por um ataque quase fulminante do coração.
A D. Aline manteve por muitos anos uma dedicação louvável na formação moral e religiosa de crianças. Por isso a Câmara Municipal de Moçâmedes, num gesto de reconhecimento, inaugurou um atractivo e bem equipado Parque Infantil com o seu nome, não faltando os animais do deserto de pequeno e de grande porte e um pequeno ringue de patinagem. A professora D. Aline Campos foi na verdade um admirável exemplo de bondade e uma lição que mereceu a pena ser aprendida; hoje é uma recordação que se preza e que se guarda, uma saudade que se eleva e que perdura).
A D. Aline era um raro exemplo de prática religiosa, afecta à religião católica, tornou-se símbolo de bondade e de caridade e é referida nas recordações de muitas gerações de moçamedenses pelas suas qualidades humanas. Parte da sua casa era cedida à actividade da catequese e no final dos trabalhos distribuia um papo-seco com marmelada a cada criança, fazendo as delícias da tarde às mais carenciadas. Promoveu, ainda, uma actividade escolar: os ensinamentos de uma primeira classe que antecipava o ensino oficial Bem preparados ficavam esses alunos, de tal modo que, quando do ingresso na escola oficial, a primeira classe era como que um "passear pela escola". Apesar do muito tempo já passado, recordo alguns desses companheiros de jornada. Entre outros que ainda retenho em memória as suas fisionomias mas não os seus nomes, o Laurentino Jardim (Tininho) e o Leonel de Sousa (Leona), este, infelizmente já falecido, prematuramente vencido por um ataque quase fulminante do coração.
A D. Aline manteve por muitos anos uma dedicação louvável na formação moral e religiosa de crianças. Por isso a Câmara Municipal de Moçâmedes, num gesto de reconhecimento, inaugurou um atractivo e bem equipado Parque Infantil com o seu nome, não faltando os animais do deserto de pequeno e de grande porte e um pequeno ringue de patinagem. A professora D. Aline Campos foi na verdade um admirável exemplo de bondade e uma lição que mereceu a pena ser aprendida; hoje é uma recordação que se preza e que se guarda, uma saudade que se eleva e que perdura).
Naquela praia (Praia Amélia) foi instalada uma empresa da pesca da baleia por noruegueses em 1918, onde o meu avô se empregou. Os noruegueses eram exímios executantes de concertina, alegres e divertidos. Partiram em 1929 para nunca mais voltarem.Um dia o meu pai surpreendeu-nos com umas modinhas antigas tocadas num brinquedo oferecido a um neto, o João Carlos Frota Carranca, que não se lembra do facto por ser muito jovem. Embora o instrumento (concertina) fosse um brinquedo com evidentes limitações, demonstrou ter sido um bom executante na juventude, espelho dos seus excelentes mestres.
Por fim a fixação definitiva na Torre do Tombo que se tornou o bairro, a casa, a escola e a morada da primeira geração, uma prole de doze filhos. Para além dos já mencionados: Manuel, Miguel e José, a Ilda, a Felicidade, a Silvéria, o Serafim, o Mário, o Henrique, o José (Zeca), a Maria da Conceição, que faleceu muito jovem e o Álvaro. Eram unidos e amigos. No cimo dessa união familiar estava o meu avô, o mandador das armações à valenciana Manuel Fernandes Frota e a grande "matriarca" e educadora que foi a minha avó Carolina dos Santos Frota. Na casa grande, na Torre do Tombo nasceram os primeiros netos. A sala de jantar enchia-se, agora, com a garotada da segunda geração. Conheceram o avô Manuel a tratar das redes no seu enorme quintal. Ao fundo desse quintal, uma porta, para lá dessa porta, as areias infindáveis do deserto do Namibe.
O meu avô faleceu nos finais da década de 1930. Conheci a minha avó Carolina já muito velhinha, figura magra num carácter forte, um tanto frágil fisicamente nos seus oitenta e alguns anos, trança em carrapito enrolada atrás. Faleceu em Moçâmedes bastante idosa, com mais de noventa anos.
Um dos seus netos, certa vez, na curiosidade dos seus seis ou sete anos, quis conhecer os motivos que levaram à decisão da sua avó em ir morar com o seu avô numa praia como a Baía dos Tigres, a mais longínqua dos centros de abastecimento onde a vegetação era inexistente, onde a água potável, por vezes, era uma miragem inalcansável, onde se sufocava nos dias de garroa, onde as dunas pareciam querer engolir casas e população, onde as rajadas de um vento forte devassavam as frágias casas de madeira pelas frestas abertas e dentro delas as famílias esperavam, em silêncio, que tudo acalmasse. Era sem dúvida o lugar do deserto mais difícil de se viver. A sua mãe, momentaneamente surpreendida com a pergunta, não descortinou uma resposta imediata e plausível. Perante a insistência a resposta partiu um tanto de sopetão: «porque andava sempre atrás do teu avô». Os tempos eram outros; já os céus eram cruzados por avionetas que encurtavam distâncias e há perguntas que não têm resposta fácil. Esse neto é o penúltimo de uma vasta lista de 35, tinha compreendido a causa da existência de um profundo sentimento de carinho, respeito e admiração, que sabia, rodeavam a sua avó Carolina. Na sua casa, na Torre do Tombo, há muitos, muitos anos, à mesa grande da sala de jantar, reunia-se a vasta prole de filhos e netos. Carolina amara incondicionalmente e soubera transmitir os valores da família pela forma mais credível: pelo exemplo de uma vida dedicada, nos bons e nos maus momentos, sempre ao lado do seu marido Manuel.
Do sítio onde estiverem: o Manuel, a Carolina, os doze filhos que tiveram, os netos e bisnetos que foram chegando, quer seja dos altos promontórios das rotas dos caíques, quer do cimo da falésia da Torre do Tombo, da duna tigrada da Baía dos Tigres ou da açoteia da casa cúbica da Rua João dos Santos na baixa de Olhão, que pertencera à família Santos, eles observam-nos e congratulam-se com a lição aprendida. Olham a mesa grande muito aumentada onde se sentam agora gerações e gerações da sua prole a comungarem os valores semeados.