Memórias e Raízes

sexta-feira, outubro 23, 2009

Uma História de Vida-WILLEN VENTER-AMIGO PARA SEMPRE

UM TEXTO DE ANTÓNIO GAMA

Entre os poucos Boeres que ainda habitavam as terras da Humpata, figurava um cidadão de quase oitenta anos, homem enérgico e desempenado, cuja existência merece algumas páginas de exaltação, porque o seu nome se acha estreitamente ligado a quase todos os acontecimentos militares da ocupação do Sul de Angola. Quando em 1927, os Boeres, arrastados por agentes da União Sul Africana, para contrabalançarem a influência eleitoral dos Alemães na Damaralândia, efectuaram um novo trek, o velho Willen Venter opôs-se corajosamente a essa aventura; mas vencido pelo número, quase sozinho, ficou agarrado à sua propriedade na Palanca, onde lhe tinha crescido a família e onde, pouco a pouco, fora ganhando força no seu cérebro a ideia de acabar como português fiel, na boa hospitaleira terra de Angola! Aqui tinha filhos e netos; aqui lhe decorrera quase toda aventurosa existência de caça e de guerra... Para que trocar, já quase no fim da vida a paisagem ridente da Humpata pela aridez desértica da Dâmara, onde, como única manifestação de vida, as plantas espinhosas e os cactos hostis parecem encolher-se sob o fogo do céu?

Ficou. E lá de quando em quando, descia ao Lubango e procurava-me para conversar. Ele sabia que eu gostava de falar do passado; e, como parte brilhante da sua vida activa se achava também localizada no passado, abria-se comigo e penetrava gostosamente nesses tempos de acção, fazendo reviver perante os meus olhos os feitos dessa quadra heróica, as figuras mortas dessa epopeia de que ele fora um vulto cavalheiresco.

Em 1876 partia do Transval uma grande coluna de 400 carros boeres, pejados de gente desesperada que, não podendo resignar-se às vexações dos ingleses, preferia meter-se ao deserto, em busca da liberdade. Chefiava essa gente, à moda bíblica, o patriarca Jacobus Friederick Botha, que pela sua idade e gravidade, assumira a chefia militar, política, moral e religiosa dos emigrantes. O longo comboio de carros adoptava, durante as marchas, rigorosas disposições de guerra e acampava sempre em laager, pronto para a defesa. Era, afinal, um povo em deslocação, pronto para a luta e levando consigo, como força moral que havia de couraçar contra todas as diversidades, o espírito da Bíblia. No meio do deserto a falta de água fez-se sentir dum modo horroroso. Famílias inteiras sucumbiram no mato, depois dos maiores sofrimentos; nalguns raros poços, onde apenas existia lama, acumulavam-se os cadáveres dos animais, que morriam às centenas, depois de devorarem com sofreguidão a terra onde existia o menor vestígio de humidade; outros, desvairados pela sede, fugiam em carreiras vertiginosas pelo mato. Foi uma das muitas tragédias humanas da história do homem.

À luz das fogueiras, nos acampamentos perdidos no seio da África selvagem, a inquietação dessas almas religiosas traduzia-se em cânticos a Deus, louvores pela sua bondade, solicitações de amparo e de coragem para finalmente virem a alcançar, como os Hebreus, uma terra da promissão, onde descansar o corpo e retemperar a alma das depressivas angústias com que a piedade e a sua fé tão duramente haviam sido postos à prova.

Willen Venter era então uma criança de quinze anos. E nos seus olhos gravavam-se para sempre os quadros dessa vida de vagabundos, rompendo todos os dias a marcha com destino incerto, guiados somente pela sua insaciável aspiração de liberdade. Os furiosos assaltos dos Negros, que esbarravam contra os parapeitos dos carros, de dentro do qual saraivava o fogo certeiro dos defensores; as cenas de caça ao elefante, ao leão e ao búfalo, em que actos da maior audácia e temeridade eram praticados em cada dia por esses homens, como garantia da sua própria conservação; as marchas violentas sobre os temporais desfeitos ou sob o acicate do calor, da sede e da fome; os enterramentos dos mortos que iam tombando pelo caminho - tudo servia para caldear a sua alma de bronze e para paralelamente temperar os seus músculos de ferro!

Prolongara-se essa odisseia por cinco anos e, durante eles, os Boeres apenas haviam conseguido fixar-se temporariamente no Kaok-feld, onde chegaram a construir casas de pedra. «Ali também famílias inteiras foram dizimadas pelas febres e o nome de Rustplaatzs (lugar de descanso), com que os emigrantes baptizaram o seu acampamento, foi efectivamente, para quase metade deles, o lugar do descanso eterno. Dezenas e dezenas de sepulturas lá ficaram para o testemunhar».

Aí lhes chegou a notícia da existência de Brancos na margem direita do rio Cunene. E um dia em que alguns caçadores haviam saído com os seus carros para a caça ao cavalo-marinho, estabeleceram o primeiro contacto com gente do agricultor e comerciante António José de Almeida, que negociava na outra margem do rio.

À sede do Concelho do Humbe vão alguns cavaleiros Boeres, que recebem do Chefe informações respeitante às terras do Planalto, à sua fertilidade, à sua abundância de águas... Os cavaleiros regressam mais depressa ao Kaok-feld, animados por uma grande esperança!

Entretanto o Chefe do Humbe comunicava ao Governador de Moçâmedes, Nunes da Matta, a visita dos emigrantes, e breve chegava autorização para que uma delegação sua se dirigisse àquela vila do litoral, afim de assentar com o Governador as condições da fixação em terra portuguesa.

O moço Willen Venter assiste com viva curiosidade à partida dos cavaleiros, chefiados por Botha, que iam penetrar nessa terra de maravilha, cujos encantos e seduções já haviam embriagado a sua imaginação!

O regresso dos emissários era aguardado com ansiedade no acampamento; e, por fim, quando estes voltaram, não só confirmaram a fertilidade do Planalto, descrevendo com entusiasmo a abundância das suas águas - a águas de que havia nos seus corpos martirizados uma sede infinita!- como contaram da bondosa hospitalidade das autoridades e das gentes de Angola. Deus finalmente mostrava-lhes a terra da promissão!

O acampamento agita-se numa alegria irreprimível. Aquela gente grave exterioriza, à sua maneira o júbilo da salvação; em quermesse movimentada, os pares enlaçam-se; e, pela noite fora, como numa tela holandesa, os corpos agitam-se em dança descompassada!

A grande caravana abandona o Kaok-feld e penetra em Angola pela Donguena, seguindo dali ao Humbe e aos Gambos. Na Catumba encontra-se com um grupo de cavaleiros portugueses que iam ao seu encontro, do qual fazia parte o Governador Nunes da Matta. O primeiro contacto com as autoridades foi agradável: o Governador teve palavras animadoras para os emigrantes. Willen Venter deixa-se impressionar pelo brilho da bandeira que acompanhava os emissários portugueses, mal podendo imaginar que à sua sombra, havia de lutar e arriscar a vida repetidas vezes!

O acto oficial da apresentação efectuou-se na Fortaleza da Huíla, em 28 de Dezembro de 1880: o Governador assinava, juntamente com o «comandante» Jacobus Friederick Botha, e alguns Boeres, um termo de declarações e acordo para o estabelecimento de uma «colónia agrícola e criação de gado». Aos emigrantes Boeres seria concedida, nos campos baldios da Humpata, uma zona de três mil hectares para fundação de uma povoação, pertencendo, ainda, a cada família a concessão que requeresse dentro da lei... Os novos colonos mantinham todos os compromissos assumidos pela Comissão que se havia deslocado a Moçâmedes, e por parte do Governo Português eram-lhes fixados direitos, entre os quais figurava em primeiro plano a inteira liberdade de culto.

Puxados por longas espanas de bois, os carrões Boeres rodavam já a caminho das planuras da Humpata. Cruzavam a cada passo linhas de água murmurejantes; e a planície larga, ao longo da qual o capim crescia abundantemente, encantava-lhes os olhos, ávidos de extensão e de liberdade. Ali poderiam exercer as suas velhas aptidões pastoris; e dali poderiam, anualmente, partir para as expedições venatórias, tão gratas ao seu feitio aventureiro. Quase se lhes haviam esbatido já no espírito as amarguras passadas; e agora sentiam pressa em delimitar os seus terrenos, em construir as suas casas, bem isoladas e espaçadas, para garantia dos pastos e a que instintivamente haviam de imprimir as linhas interiores e exteriores das farms holandesas.

A comissão da distribuição das terras, constituída pelo Presidente do Conselho Colonial, Abreu e Castro de Saldanha da Gama, alferes Artur de Paiva, comandante Botha e Gert Van Der Merwe, trabalhava afanosamente.

Os Boeres sentiam-se perfeitamente à vontade, pois na área da Humpata, apenas se achavam estabelecidos a essa data (1880) dois Portugueses.

No dia 19 de Janeiro de 1882, no lugar da tchangarala, a pouca distância da Humpata, realizava-se, na presença do Governador, de Abreu e Castro de Saldanha da Gama, de Artur de Paiva e de outros Portugueses, a cerimónia de abertura de uma grande vala de água, tirada dos rios Neves e Canhando, para irrigação dos terrenos já distribuídos pelos novos colonos.

O comandante Botha, empunhando a Bandeira Portuguesa, proferiu uma alocução, no qual terminava por formular um voto: «Na presença hoje de dois Chefes estrangeiros e uma bandeira também estrangeira, espero que o futuro nos tornará irmãos e que, abrigados à sombra da sua bandeira, tenhamos tudo a esperar da sua protecção e da sua justiça»

Pouco tempo depois, já essa bandeira deixara de ser bandeira estrangeira, porque, por portaria de 23 de Dezembro de 1882, eram os colonos Boeres naturalizados portugueses.
Willem Venter era então um rapaz de vinte anos, corajoso, forte, determinado, desempenado e de «sangue quente». A vida aventurosa em que logo de início se encontrara envolvido, imprimia feição à sua alma viril, a qual a existência tranquila e monótona da Humpata não podia de forma alguma dar satisfação.

A Conferência de Berlim pusera-nos na necessidade de realizar uma ocupação efectiva para reconhecimento de direito de posse das terras africanas. As ameaças definiam-se no sentido de Leste, onde nenhuma linha de fronteira havia sido determinada. Urgia, por isso, avançar prontamente e fixar sobre o Alto Cubango alguns pontos fortificados, que não só balizassem a nossa ocupação, mas que pudessem ainda manter-se em condições de barrar o desenvolvimento de qualquer outra influência.Essa importantíssima missão foi cometida a Artur de Paiva, que desde a chegada dos Boeres havia exercido o cargo de Chefe do Concelho da Humpata. O jovem oficial, cujo nome tanto havia notabilizar-se nas Campanhas do Sul, contraíra casamento com uma filha de Jacobus Botha, o que, a par da rectidão do seu caracter, lhe dera sobre os Boeres um notável ascendente.

Willen Venter alista-se como auxiliar nessa campanha audaciosa, tentada com os minguados recursos do Planalto. E logo o moço cavaleiro se notabilizava pela infatigável resistência e pela decisão com que enfrenta as situações difíceis e procura os perigos.
Assim foi iniciada a sua vida de acção. E, quando de novo, Artur de Paiva parte do Planalto, em 1890, para vingar a morte do sertanejo Silva Porto, no Bié, a vontade e a opinião de Willen Venter, homem feito e endurecido, pesam já na direcção do grupo de cavaleiros Boeres que em volta dele espontaneamente se agrupam, colaborando nas operações que deram a vitória às armas portuguesas. A sua valentia serena, a sua confiança raciocinada, o seu conhecimento perfeito da vida do mato, onde por vezes um estratagema audacioso pode decidir da sorte de uma coluna em operações, põem nas mãos fiéis de Venter o comando desses homens fortes.
Nessa agitada campanha recebe o seu primeiro ferimento. E, desde então, com ele se conta sempre confiadamente, porque na rectidão do seu espírito não podem albergar-se sentimentos que não sejam de pura e inalterável lealdade. Já o seu sangue se vertera - e não havia de ser só uma vez - pela causa nobre a que havia de dedicar a sua vida inteira.

Desde 1883 era o Sul de Angola talado por grupos de Hotentotes armados que, acossados pelos Alemães da Dâmara, se internavam em território angolano, praticando sobre o gentio pacífico razias sangrentas e roubos audaciosos. «Os Hotentotes que se acham hoje (1941) em armas no distrito, nos terrenos do Concelho do Humbe, Gambos e Huíla são, tomando o mínimo do número, quatrocentos, e trinta deles montados em cavalos, armados de boas espingardas Martini Henry e Westley Richards, além de um grupo de um grande número de Bushmen, (Bosquímanes) pior armados mas não menos para temer em combate, do que os seus senhores».
Sobre as qualidades guerreiras desta gente nómada: «São homens que atiram tão bem como os Boeres e não ignoro - (assim foi dito pelo meu pai e avô) qual o resultado da guerra que os Ingleses contra eles sustentaram no Transval. Não se sustentam a pé firme, em campo descoberto, contra forças europeias que os ataquem e os carreguem à baioneta mesmo, mas são temíveis em guerra de emboscada contra essas mesmas forças. A segurança dos seus abrigos dá-lhes maior firmeza no tiro. É, pois, imprudente mandá-los atacar pelas forças indígenas de que dispomos e, dando-se tal caso, a derrota destas forças é infalível».

Artur de Paiva confia a difícil missão de os bater ao valoroso alferes Quintino Rogado, sob cujas ordens põe os auxiliares Boeres, alistados para esse fim.
Andando as forças em perseguição dos Hotentotes, Willen Venter, que chefiava um grupo de dez cavaleiros, teve a notícia de que esses salteadores se encontravam no Hai. Pôs-se no seu rasto; e, topando com eles numa libata, a uma três horas de Tábua, aí os atacou. Travando-se vivíssimo tiroteio de parte a parte, caindo logo dois Boeres mortos e ficando Venter gravemente ferido por uma bala que o atingira numa ilharga, por outra que o atravessou pelas costas e por uma terceira que, ricocheteando nos fechos da sua espingarda, o foi ferir na cara. Dois homens organizam umas andas para conduzir o ferido, enquanto os restantes fazem face a mais de cinquenta Hotentotes. A retirada impõe-se, sem ao menos poderem enterrar os mortos que jazem no chão!

Willen Venter chega à Humpata entre a vida e a morte; mas o vigor do seu organismo depressa o restitui à vida e à saúde.
Uma larga quadra de tranquilidade dá-lhe a seguir ensejo a entregar-se às aventuras de caça, que ao mesmo tempo lhe permitem tomar um perfeito conhecimento da região. Quando, em fins de Abril, tombavam as últimas chuvas borrifadas, já os seus carros e os seus cavalos seguiam para o mato, onde, durante meio ano vivia embrenhado, no encalço do rinoceronte, do elefante e do leão.
Artur de Paiva, em 1898, após o massacre do pelotão do Conde de Almoster em Jamba Camufate, recebe ordem de socorrer a Fortaleza do Humbe, cercada pelo gentio revoltado.
Chefiando os auxiliares Boeres estava a seu lado Willen Venter, que, em plena quadra de chuvas, sofria, como todos os que constituíam a coluna as mais duras provações.
Depois de uma vida activa de dedicação e patriotismo, Artur de Paiva embarca para a Metrópole, desgostoso e incompreendido. Seguem-se-lhe nas lides da ocupação do Sul os vultos gloriosos de Padrel, Alves Roçadas e João de Almeida, que a impulsionam com energia.

Na pequena expedição comandada por Alves Roçadas, que em 1905 foi à conquista do Mulondo, onde o sanguinário Hangalo exercia sobre os seus súbditos e sobre os negros dos sobados vizinhos as mais horríveis crueldades. Willen Venter comandava de novo o troço de cavaleiros Boeres, que, descendo o Cunene, pelo Capelongo, se reuniu à coluna no Mulondo. Os Boeres marchavam em perseguição do soba batido, que foram encontrar já morto pelo seu próprio Chicaixeiro (introdutor da embala) e conduziram a sua cabeça ao acampamento da coluna. Daí internaram-se no Cuamato, apreendendo gado e tornaram de seguida parte activa nas razias praticadas na região dos Gambos. Pela sua decisão e audácia, é Venter nomeado, por proposta de Alves Roçadas, cavaleiro da Ordem de Torre e Espada. A indomável rebeldia do Cuamato preocupava os dirigentes da Colónia. Da expedição de 1904, contra ele dirigida, resultara o grave insucesso do Vau do Pembe, em que trezentos portugueses haviam encontrado morte inglória. Na chana de Mata-Bindane continuavam insepultas as ossadas desses mártires. Nem que não fosse senão para abater a arrogância e insolência dos Cuamatos, era indispensável passar o rio e infligir-lhes um castigo severo.
Roçadas, tendo organizado uma coluna punitiva (1906), atravessa o rio e estabelece-se no outeiro, em frente do Vau Muconde, e aí constroi um Forte (Forte Roçadas), que havia de servir de base às futuras operações do Baixo Cunene.

Enquanto decorria os trabalhos da construção, é ordenada uma incursão em território do Cuamato Pequeno, a realizar pelos auxiliares Boeres e Willem Venter, alguns portugueses e uma pequena força de Dragões de Angola. «A acção fora quente», diziam os auxiliares. Os Cuamatos, em grande número, tentaram cercar os nossos com fogo violentíssimo. Os Mucimbas foram fortemente dizimados pelos Cuamatos, mais velozes. Willem Venter, chefe dos auxiliares brancos, teimava permanecer no meio do semi-círculo; não queria que dissessem que fugia. Mas a boa razão dos seus chamou-o à realidade. Retirar era urgentíssimo. Assim se fez, a toda a velocidade dos cavalos. Um tiro prostra a montada de Bartolomeu de Paiva, filho primogénito do grande herói português Artur de Paiva. É homem perdido. Orlog pára, ampara-o e iça-o para cima do seu cavalo e salva-o.

Estabelecido o Forte na margem esquerda do rio Cunene, urgia acabar de vez com a lenda da invencibilidade dessa gente que todos os anos passava o rio e assaltava traiçoeiramente os povos ribeirinhos, já submetidos à nossa autoridade, matando, incendiando e roubando gado e gente. «Estes foram os motivos remotos da guerra. As causas próximas: a necessidade de lavarmos a afronta de 1904 (desaire do Vau do Pembe); a necessidade ainda mais urgente de se iniciar a ocupação efectiva daquela região, habilitando-nos por essa forma a satisfazer compromissos internacionais e a estarmos preparados para, num futuro mais ou menos próximo, procedermos de comum acordo com os vizinhos Alemães à demarcação da fronteira natural naquela parte dos nossos domínios, que demoram entre o Cunene e o Cubango».

Da grande coluna, então organizada, constituída na maioria por tropas do Continente e comandada pelo capitão Alves Roçadas, fazia parte um troço de auxiliares, dirigidos pelo bravo Tenente da Infantaria, Teixeira Pinto, compreendendo Portugueses chefiados por José Lopes e Emídio Baptista, bem como os Boeres de Willen Venter, que, à frente dos seus cavaleiros, havia de tomar parte de todas as acções dessa dura campanha, acabada a qual foi condecorado com a medalha de prata da Rainha D. Amélia.
Era interessante ouvir da sua boca a evocação saudosa desses tempos de acção e luta. A respeito de cada um dos dirigentes tinha um comentário pitoresco e justo. As figuras principais dessa epopeia desenhavam-se nitidamente pela viveza da sua linguagem expressiva: o grande Artur de Paiva, que se impunha dominadoramente pela lúcida serenidade e pela determinada decisão do seu querer; Quintino Rogado, patrulheiro incansável, que bateu a cavalo todo o Sul de Angola; Roçadas, o Chefe silencioso, metódico e tenaz, a quem se deve a ocupação de quase todo o Ovampo; Eduardo Marques, que, estreitamente ligado a Roçadas como seu Chefe de Estado- Maior, o completava pela sua previdente e activa ubiquidade:
- Ah! Eduardo Marques é magro; mas o coração dele não é magro!

Portugal entrara na Grande Guerra. Dada a vizinhança dos Alemães na Dâmara, as populações do Sul viveram horas de graves inquietações.
Roçadas, na mira de lançar mão de todos os meios de defesa locais, procurava recrutar auxiliares entre os colonos portugueses e Boeres. «Os principais como Willen Venter, Andris Alberts, Bartolomeu de Paiva e outros, isto é, os velhos companheiros de 1905, 1906 e 1907 - Mulondo, Cunene e Cuamato, puseram-se logo à nossa disposição. Estes arrastariam outros, seus amigos e parentes.
«Conseguimos, assim, assegurar um contingente de uns trinta auxiliares de confiança, dedicados e leais».
«Entretanto - quero aqui prestar-lhe o meu preito de amizade e admiração - debatia-se numa longa agonia, lá ao longe, na sua farm modesta, o velho Botha, que em 1881 trouxera a colónia do Transval, através de mil perigos e privações, subjugado ao peso dos anos e duma doença pertinaz.»

Fui de propósito levar-lhe as minhas consolações. E nunca esqueci o momento em que o venerando patriarca, rodeado de todos os seus, ao fitar-me, (falando-me do meu pai e avô; segundo ele: nutria uma enorme consideração e amizade por ambos), se deixou dominar pela comoção, e uma lágrima rebelde deslizou por aquela face sempre honrada e austera. «Recordou-se talvez de um dia parecido, em que o meu pai e outros companheiros, foram expressamente à Humpata convidar os Boeres para os acompanharem na guerra aos Cuamatos, e só conseguiram levar uns dezassete ou dezoito: e, a uma observação que lhe fizeram a este respeito, ele o velho Botha, quase octogenário, mas forte ainda, no seu arcabouço de atleta, alto e aprumado como os eucaliptos da sua farm, respondeu:- Senhor General Mateus da Gama, os Boeres de hoje já não são os mesmos!
«Os Boeres de hoje já não são os mesmos», dissera o patriarca Botha, na hora da agonia.

Na verdade, entre eles haviam-se infiltrado elementos novos que, agitando esperanças ilusórias faziam activa propaganda contra a soberania portuguesa. Antes de Naulila, desempenhando as criminosas funções de agente de ligação entre os Alemães do Planalto e os seus concidadãos da Damaralândia, o Boer Duplessis, «montado num cavalo ou mula branca, com alguns gentios ribeirinhos do Cunene informaram, passava e repassava o Vau de Schwartz-boy-Drift e lá ía a caminho de Qualude, Dâmara, levar correspondência que lhe confiavam e regressava pouco depois para repetir a missão. Essa propaganda foi-se activando dia a dia; até que, em 1927, patrocinado pelo governo Sul Africano, teve lugar o êxodo da gente Boer de Angola, para terras da Dâmara.A acção nefasta dos agentes da União não se desenvolveu todavia sem provocar entre Boeres uma certa efervescência, porque nem todos, em especial os velhos que haviam tomado parte nas campanhas da ocupação, se resignavam em ânimo leve ao abandono do solo hospitaleiro de Angola; contudo, levados pela sua tendência nómada, um novo trek se operou, que para sempre os afastou da terra que há mais de meio século havia sido para eles a terra da promissão.

Houve porém um homem que, nas reuniões preparatórias da partida, ergueu a sua voz corajosa, verberando o procedimento dos seus compatriotas, que insensatamente íam trocar o paraíso pelo deserto, voltando as costas ao solo amigo, que, em hora difícil carinhosamente os agasalhara: esse homem foi o honrado e valoroso velho Willen Venter, que, leal e firme no obstinado cumprimento do seu dever, ficou quase sozinho na sua farm, aguardando serenamente a morte, que tantas vezes enfrentara ao lado de Artur de Paiva e de Alves Roçadas, e, para se furtar à qual o seu corpo nunca esboçara sequer um passo à retaguarda!

Esta era a sua terra, que, como Pátria adoptiva, se abrira hospitaleiramente para o agasalhar, a ele e a seus pais, numa hora de enorme angústia e graves dificuldades. Aqui decorrera a sua vida; aqui lutara e guerreara; aqui constituíra família, construindo a sua casa e fertilizando o solo pelo seu próprio braço; e aqui vertera o seu sangue... Não! Por coisa alguma largaria a sua farm, onde os eucaliptos altos à tarde ramalhavam docemente, exprimindo-se em linguagem amiga, que ele muito bem compreendia, porque eram tão velhos como ele, e, como ele, sabiam com quanto esforço tinha sido feita esta terra de Angola, que era afinal a sua verdadeira Pátria!


Luanda, Setembro de 1941