Memórias e Raízes

domingo, fevereiro 28, 2010

O COLONO - Homenagem a ALEXANDRE SIMÃO PORTUGAL




Um texto do Professor Doutor MÁRIO FROTA











Abalara vergado ao peso das responsabilidades familiares que contraíra.
Abandonara a sua Académica que o alcandorara a herói pela vitória na Taça (a Primeira) de 39.
Prescindira da carreira que abraçou e a que se entregava com invulgar devoção.
Demandara os longes ignotos com o espírito que o trouxera do chão amado do Carvalhal Formoso, lá pelas bandas de Belmonte, ao jeito de quem não teme a aventura e desafia as procelas do mar alteroso rumo às inóspitas plagas africanas.
Acolhera-se inicialmente à sombra de um irmão empreendedor que se instalara em Luanda.
Frustada a experiência de vida na capital, desencanta do baú com que se fizera ao mar, amparado em quatro rebentos em que se inspirara para afrontar os reveses com que a vida o brindara, o diploma da ESCOLA SUPERIOR NORMAL que, findo o 7º. ano do Liceu, cursara e o habilitara à docência.
Investido em funções de Mestre-Escola, demanda a verdejante Lubango, altaneira, nos contrafortes da Chela, promisora região que os cabouqueiros oriundos da Madeira conformaram a golpes de audácia e com o desvelo das mãos de quem ama entranhadamente a terra acolhedora que se abre como virgem ardente à paixão que incendeia a alma.
No seu mourejar, privilegia com invulgar mestria os dotes que o impelem para a juventude: consagra-se generosa e devotadamente aos jovens, na multirracialidade que fora a experiência de vida de uma sociedade sem barreiras étnicas (mas obviamente com divisões económicas como as que se acham onde a etnia é única e singular); vota-se ao desporto escolar, treina a Mocidade, cria a Académica da Huíla, ei-lo ao leme da selecção da Huíla. Mais tarde dirige uma instituição do Estado que acolhe de todos os cantos de Angola crianças, jovens e adolescentes que frequentam estabelecimentos de ensino da área pedagógica da Huíla. E aí desenvolve inolvidáveis actividades de formação.
Os mais novos a quem ensinara as primeiras letras, jamais olvidarão os feitos heróicos que lhes transmitia com invulgar entusiasmo e o halo de lusitanidade que imprimia à narrativa histórica:

10 DE JUNHO

Ó Céus e mares de Deus
Ó história do mundo inteiro
Vós sabeis que, em toda a Terra,
Portugal foi o primeiro!

Sabeis dos conquistadores,
Dos nossos navegadores,
A vida, os feitos, a glória,
A alargar a fé, o império,
Num mundo só de mistério.
Ainda sabeis de cor
A vida cheia de amor
Dos nossos mártires santos,
Que, em defesa da Verdade,
Tão cheios de santidade...!
Sublimaram seus encantos.
Sabeis dizer a primor
A história do seu cantor,
Aquele incompreendido
que tanto sofreu na terra,
Desde a fome à guerra,
E morreu desconhecido...
Então, Ó brisa divina,
E tu, onda cristalina,
Ó história da humanidade,
Gritai alto aos portugueses
Que se curvem reverentes
Neste dia de saudade.

E, depois aos mais meninos,
Em seus peitos pequeninos
Agitai seus corações.
Ponde-lhes as mãos em doçura
E o joelho em curvatura,
Numa saudade a Camões...

E, para sobreviver que magros eram os proventos da docência e farta a prole de quem praticava exemplarmente os mandamentos da Igreja consagra-se a outros mesteres. Cedo, em jeito de prece, dirige à Senhora do Monte uma oração impregnada de ternura:
Nossa Senhora do Monte,
Por maior que seja a calma ,
Tem a frescura da fonte
E mata a sede da alma.
É alta fraga o altar...
Mas, por todo o horizonte,
Quem passa sem te fitar,
Minha Senhora do Monte?!
Tem aos pés a sua fonte
Que mata a sede a quem passa
E vai rezando baixinho
(Pelas curvas do caminho):
«Maria, Cheia de Graça...»

Em momento de fundo desalento, em que a inspiração de poeta desabrocha, confiou ao papel as saudades da Mãe, nos ídos de 46, em poema a que dera o subtítulo de O COLONO:

A casa...o campanário...o céu
... ... ... ...
Saudades assim, ninguém tem...
Porq´eu sucumbo a recordar
A minha terra... a minha Mãe.

Santa velhinha que ficou chorando
Lá na serrania do meu Portugal...
E eu já não posso suportar meu mal...

Volto ao doce lar vou deixar aqui
Meu fato branco e meu chapéu de linho.
Quero pegar novamente o meu cajado,
Voltar a ser pastor no meu cantinho...

Quero o remanso das minhas ovelhas,
P'ra relembrar da flauta as melodias,
Quero rezar ao pé da minha Mãe,
Ao doce badalar d'Avé-Marias.

Ao pranto do colono (e colono deu como corruptela nos plainos da Chela "CHI (os) CORONHO (colono)) sucedia-se a vontade indómita de derribar os obstáculos que se antepunham, na transparência do exemplo, no luzeiro ofertado como sinal à comunidade envolvente nos discípulos que criara, no fervor com que quotidianamente punha um adobe mais na edificação de uma sociedade plural, multirracial, multi-ideológica, no sacrossanto respeito por liberdades intrínsecas à natureza humana que poder algum sufocaria: Angola era expressão de democracia social.
E, nas fichas de polícia em que ao tempo se plasmavam os traços da natureza de cada um e todos, em particular dos que à função pública se votavam, um registo se surpreendeu: "não é da situação, mas é um cidadão exemplar".
E que fosse da situação! Importante é que se seja vertical, íntegro, sério, portador de valores.
Desfez-se do que da massa da herança lhe coubera em quinhão lá para as bandas da Cova da Beira.
A sua terra, mitigadas as saudades do chão natal, era a radiosa Angola, que o acolhera generosamente no seu seio, a sua comunidade a dos que na grande Academia, que fora o Liceu da Huíla, se preparavam para a magnitude das missões do devir.
Nas actividades complementares que desenvolvera foi explicador, camionista, treinador gracioso de futebol, pastor das ovelhas que transpusera para os espaços que pretendera reconstituir a sua Serra da Estrela, irresistivel tentação de quem não projecta regressos, sequer episódicos, de quem transportara raízes para se enraizar noutra latitude, rodeado pelos filhos que a terra pródiga lhe doara ungidos por Deus.
E a figura do desportista de eleição que fora e era, exaltava-se em esplendor em particular quando os Estudantes de Coimbra deambulavam em digressão pela amada terra a que em 1482 Diogo Cão, patrono insigne do seu Liceu-Academia, aportara.
Amara entranhadamente a terra e os jovens que nela se formavam com as saudáveis praxes importadas da Lusa-Atenas nas condicionantes do tempo.
Uma trintena de anos se escoava...
Os algozes da história projectaram-no e aos seus ainda dependentes, esvaído, perturbado, para o porto de cais do exílio sem retorno - nas contas do tempo, cercados pelos desconjuntados caixotes do magro espólio de um abandono com ressaibros de hedionda traição, é a imagem do campanário que ante a importância de uma terra úbere e acolhedora retorna ao espírito, num adeus ao futuro, num regresso apoucado ao passado. Do campanário de que saudades não nutria, obnubilado por campanários outros que edificara na terra adoptiva.
E no cuidado balanço de uma vida, é o déficit que avulta no superavit do rol de realizações sem par que os filhos espúrios de uma pátria ferida pela ignomínia da História, projectam, negando-se e negando séculos de convívio.
"Só teremos de chorar os mortos se os não soubermos respeitar em vida".
A esperança renascida nos alvores de 92, que Alvor sepultara, levara-o de volta a Angola.
De dignitários do poder a cidadãos anónimos, reconhecendo-o, saudaram-no e homenagearam.
Confiara. A breve trecho ecoa de novo o som da metralha. Angola é condenada às galés.
Tal como na turva estratégia dos ínvios políticos de Lisboa, de novo se precipitara a luta fratícida em que um milhão de vidas se consumiria.
Na contemplação das sombras em que pretensos "vultos", sobre a epígrafe VENENO, escreve:

"O homem que o é de h pequeno
É um reles frasco de veneno
Que ultrapassa o vil odor das fezes.
É um produto adulterado,
-O fétido e imundo resultado
Duma prisão de ventre em nove meses."
gjhujhu
jkhjkjk
E ao "aportar" à Batalha, após a castástrofe por que se saldara a "exemplar descolonização", terra a que nada o ligava, a não ser o facto de ali haver logrado habitação, registara:

Estamos longe
Ou já é perto
Dos limites do Deserto
Para a Terra Prometida?

Deus o sabe,
Mais ninguém.
-Entre amigo!
-Donde vem?

Das lonjuras do caminho...
-não é pouca a minha idade...
à procura do conforto
Que só há na eternidade.

Descanse por um momento
Neste seu acampamento.
Temos pão e temos vinho...
-se tiver necessidade,
Fale com sinceridade,
-Leve pão para o caminho!

Resistira ao infortúnio, retirara-se do fecundo convívio com a juventude, preenchera o tempo consagrando-se ao artesanato que lhe completaria a magra reforma de inspector escolar, a que acedera quando bruscamente o retorno das caravelas... se aprontou...
Finou-se perto dos 90: a 5 de Fevereiro de 2002.
E, em reflexão terminal, indagava-se:

"Mas quem somos, afinal?!
Na vida... bem poucochinho...
Depois do vendaval
Só destroços no caminho".

O registo é imperfeito, incompleto, quiçá, inconsequente...
A homenagem, porém, é sentida. Merecida. Para lá de merecida.
Em Alexandre Simão Portugal, cidadão do mundo, que nunca se reviu nos estatutos dos primitivos colonos, que desbravaram o inóspito sertão, na acepção tradicional do termo, mas que contribuiu a seu modo para o desbravamento de inteligências, para a materialização do lema ora caído em olvido -"mens sana in corpore sano" -, que subtraiu à ociosidade crescentes camadas de jovens de todos os estratos, condições e modos de vida, que deu a Angola e aos angolanos de todas as matizes, nos quadros do tempo, o seu intelecto e sua energia contagiante, em Alexandre Simão Portugal - o Prof. Portugal para tantos que com ele privaram e dele fruíram ensinamentos e orientação - o preito de homenagem a quantos, em mourejar permanente, construíram uma portentosa Angola que outros, na sua avidez insaciável, lançaram na mais ignóbil destruição.
Terra de afectos, Angola não merecia que o fruto de tantos - brancos, negros, mestiços feitos do amor de povos e raças distintos - se houvesse ingloriamente malbaratado, num retrocesso à barbárie.
E quantos insuspeitos agentes do mal, cuja personalidade se argamassou em ódios e propósitos de incontrolável destruição, se deleitam em denegrir uma colonização que, essa sim, nos seus desacertos pontuais, foi exemplar, homenagear quem em domínios distintos soube construir um País portentoso que o desvario de gente desprovida de senso e de humanidade lançou para o esgoto da História, é imperativo de cidadania, é dever de elementar justiça que ninguém de coração lavado e ideal alevantado se recusará a subscrever.
Que na sublimidade do gesto a História o registe!

Mário FROTA