Memórias e Raízes

quinta-feira, janeiro 18, 2007

INÁCIO

(Modelo de uma canoa da picada do blog: http://www.canoadapicada.blogspot.com/)

Desfolhei um bloco de notas de há 15 anos onde se encontra o nome de um velho pescador olhanense que me contara um episódio da sua vida quando criança relacionada com uma viagem em barco à vela de Olhão para a cidade de Moçâmedes, a actual cidade do Namibe no sul da República de Angola.
A páginas tantas, lá estava o nome e algumas notas naquele bloco de recordações já um tanto desgastado pelo tempo: Inácio, canoa de pesca e naufrágio nos mares da Serra Leoa. Mais adiante o nome Zá-Zá que naquele momento não relacionei logo com o nome da canoa.
Naquele encontro Inácio vestia a tradicional camisa aos quadrados e numa das mãos transportava um balde preto com alguns peixes dentro para a sua última refeição do dia. Dirigia-se a casa após umas horas de pesca na Ria Formosa frente a Olhão. Disse-lhe que ele me fora indicado por um seu amigo que sabia haver existido ligações familiares entre as nossas famílias em África, e, por isso, pedia-lhe uns breves momentos do seu tempo para conversarmos. Poisou o balde. Aquele encontro requeria mais do que uns breves momentos do nosso tempo. Havia uma história para contar relacionada com uma viagem para África, a partir de Olhão, em barco á vela:

Inácio era ainda uma criança quando seu pai decidiu deixar Olhão e rumar Moçâmedes, como muitos outros pescadores olhanenses o tinham feito já.
Os parentes de Inácio em Moçâmedes tinham conhecimento dos preparativos para a viagem e aguardavam notícias do dia provável da sua chegada.
Em Olhão o pai de Inácio apetrechou a sua canoa de pesca do alto, revestiu-a a folhas de cobre, obteve autorização de saída da capitania e preparou-se para zarpar. Levava alguns familiares e amigos a bordo e queria levar também o seu rebento Inácio. Mas Inácio queria ficar com sua mãe em Olhão e à hora de partir atravessou baldios e areais e escondeu-se. Procuraram-no por todo o lado e não foi encontrado. Só regressou a casa, para junto de sua mãe, quando viu, do esconderijo, a canoa de seu pai, já longe, a navegar, de velas enfunadas.

Alguns dias depois a tragédia abateu-se sobre aquela canoa de pesca do alto que ousava atravessar perigosamente o Atlântico até Angola, então possessão portuguesa de África.
Perto da Serra Leoa, Neptuno bramiu a sua raiva àquela ousada gente, e a pequena canoa de pesca do alto sucumbiu na refrega, num mar que não era o seu.
Fora vencida pelas vagas alterosas e afundara-se.

Inácio terminou a narrativa com uma profunda tristeza no olhar. Quantas vezes não teria contado esse episódio da sua vida de criança com a mesma tristeza que a distância no tempo não dissipou.
Contei-lhe que ouvira de minha mãe, a história do naufrágio dos Trocatos, ainda criança, em África e da forte impressão que me causara a ponto de não a ter esquecido. Parecia que se ligava àquela história de Inácio mas vivida pelos seus familiares em Moçâmedes: contou-me minha mãe das missas rezadas pelos familiares dos Trocatos, na esperança de ainda serem encontrados com vida perdidos na imensidão do mar, do desespero vivido, das ídas à praia, vezes sem conta, sempre que alguma vela surgia no horizonte á entrada da baía. Seriam duas partes duma mesma história ou teria havido um duplo naufrágio naquela época?

Aquela tragédia marcou Olhão e a sua diáspora no sul de Angola nos primeiros anos da década 1920.
Inácio achava-se um "sobrevivente".
Na despedida ofereceu-me uns peixes do seu balde preto. Tinha trazido a mais para oferecer, caso encontrasse um amigo, e ofender-se-ía se eu os recusasse. Solidariedade olhanense?
Inácio nunca emigrou. Tornou-se pescador e foi envelhecendo no mar da sua Terra.

Sobre este naufrágio escreve o grande historiador olhanense Dr. Alberto Iria numa publicação de 1938:
"A última embarcação que seguiu para Moçâmedes, há pouco mais ou menos 15 anos, foi a canoa da picada «Zá-Zá» que, cheia de gente moça e aventureira, saiu um dia da barra de Olhão para nunca se ouvir dizer nada do seu destino". Continua o texto dizendo:
"Outros tiveram melhor sorte. A chalupa Florinda de mestre José dos Reis Peixe Rei, andou à deriva nos mares de África com o mastro grande partido e as velas feitas em farrapos até aportarem no Congo Francês, ou o palhabote de mestre João Valente e o caíque de mestre João Bento Estrela que aportou à ilha de Ano Bom depois de a sua tripulação flagelada pela fome e sêde ter sofrido as piores inclemências".

Estes episódios dizem bem do temperamento do povo de Olhão.
Os resultados práticos da colonização espontânea e livre feita pelos pescadores olhanenses no sul de Angola superaram em muito tudo o que se possa imaginar. Uns falam em milagre, outros em força criadora. Foi sobretudo a obra da coragem, do sacrifício e da perseverança na epopeia do mar e na epopeia do trabalho árduo. Ela lá está para quem quiser observar.


5 Comentários:

  • Caro Senhor,

    Estou a escrever um livro, cujo personagem, faz uma viagem de Inglaterra para Portugal ( Plymouth/Lisboa) num navio mercante de grande porão para 600 tons cerca com tripulação genovesa da casa Spínola daquela república transalpina em 1719. No entanto queria caracterizar o navio.Penso que um Flyboat holandês pode ser uma boa escolha. Mas um amigo de Olhão ( da família Honrado) falou-me que os palhaboltes também operavam na rota de Inglaterra. Parece que o Sr. é entendido na matéria e eu gostaria de saber se os palhabotes eram bons para a carga que transportávamos para a G.Bretanha, pipos de vinho sobretudo. Tb me ligam a Olhão alguns laços familiares.Sou da família de um filantropo conhecido na terra (Manuel Lopes de Almeida) e dos Guitas.Antecipadamente grato pela sua ajuda com os melhores cumprimentos Manuel Fonseca

    Por Anonymous Anónimo, Às 8:23 da tarde  

  • Gostei de ler sim, e tb tenho ideia da nossa mãe falar sobre o naufrágio dos Trocados...Continua a rebuscar essas memórias.
    Kandandus
    Walter

    Por Anonymous Anónimo, Às 12:14 da tarde  

  • Caro senhor Manuel Fonseca:
    Sinto-me muito honrado pela sua intervenção no blogue.
    Sobre o assunto que me coloca, infelizmente não posso ajudar dado que não sou expert na matéria. Sòmente lhe posso afirmar, pelas leituras que fiz, que os palhabotes ou barcos semelhantes poderão ter chegado à costa inglesa por serem barcos utilizadoa na pequena e grande cabotagem, porém com capacidade até 150 tons. Sabe-se da existência de acordos para instalação de pescarias por portugueses na Flandres e podemos admitir que pudessem ter trazido também aproveitamento comercial. Os palhabotes possuíam 2 mastros com armação latina triangular ou quadrangular e alguns fizeram transporte para o sul de Angola.Mais nada posso adiantar neste momento.Logo que obtiver mais informação terei muito gosto em explanar.
    Felicidades para o seu projecto que requer muito trabalho de pesquisa.
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 1:31 da tarde  

  • parabéns pelo blog, muito interessante mesmo! pelas suas referências a olhão e aos olhanenses coloquei um link do seu blog no meu blog sobre olhão http://onossoolhao.blogspot.com

    Por Anonymous Anónimo, Às 11:22 da manhã  

  • Quero rectificar uma informação sobre a tonelagem dos palhabotes. Alguns tinham capacidade para transportarem 300 e mais toneladas.
    Cláudio Frota

    Por Anonymous Anónimo, Às 1:05 da tarde  

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